quarta-feira, 28 de maio de 2014

CARTA ABERTA À PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF

Sra. Presidenta,

é por acreditar que não seja sua intenção omitir-se diante da grave injustiça perpetrada contra mim que tomo a liberdade de mais uma vez endereçar-lhe um apelo.

A resposta ao anterior, transmitida por um membro do seu Gabinete pessoal, foi a de que a Sra. "lamenta não poder atender seu [meu] pedido por ser o assunto apresentado de competência do Poder Judiciário".

Ora, passei minha vida adulta inteira defendendo os ideais revolucionários e os direitos humanos, o que várias vezes me colocou em contato com as leis e os tribunais, começando pelos quatro processos a que respondi em auditorias militares na última ditadura. E, em termos profissionais, a carreira jornalística também me trouxe razoável familiaridade com os assuntos jurídicos.

Assim, jamais recorreria a uma presidenta da República, mesmo sendo ela ex-companheira de militância, se dar um fim às minhas aflições não fosse plenamente justificável face à gravidade do abuso de poder que estou sofrendo e se isto não estivesse na sua (dela) esfera de competência. Sei muito bem que "conforme determina a Constituição, o chefe do Executivo não pode intervir nas questões de outro poder", não precisando de que ninguém me lembre disto.

Mas, num episódio recente, a Sra. admitiu ao povo brasileiro ter tomado uma decisão questionável por não haver recebido todas as informações pertinentes.  Ouso supor que isto esteja novamente ocorrendo, em meu desfavor.

Ao contrário do que assessores lhe possam ter dito, não é o Poder Judiciário o principal culpado pela aberrante e inaceitável morosidade do meu mandado de segurança  (nº 0022638-94.2007.3.00.0000) --sete anos e três meses de tramitação, sendo que já se passaram três anos e três meses desde que, no julgamento do mérito da questão, todos os oito ministro reconheceram meu direito.

Aliás, chega a ser paradoxal que companheiros petistas se queixem com tamanha indignação e tanta veemência de decisões monocráticas bizarras tomadas no STF,  nas quais eles vislumbram velados intuitos persecutórios, mas nada tenham a dizer da decisão monocrática igualmente bizarra que o novo relator do meu processo no STJ tomou, anulando com uma penada a decisão unânime de seus colegas que julgaram o caso.

Mas, mesmo que fosse também um intuito persecutório o motivo subjacente de tal decisão, ainda assim ela teria sido propiciada por (mais) uma claríssima manobra protelatória da Advocacia Geral da União que, como a Sra. não ignora, faz parte do Poder Executivo.

Ou seja, já lá se vão 39 meses que o cumprimento da sentença do STJ está sendo retardado porque a AGU, obrigada a bater em retirada quanto ao mérito da questão, saiu pela tangente, arguindo uma filigrana jurídica para causar mais delongas, qual seja a de que mandado de segurança não seria o instrumento jurídico adequado. E o novo relator, surpreendentemente, aceitou:
"... analisando-se melhor os autos, percebe-se que o julgado ora embargado, ao contrário do que se registrou, olvidou-se da existência de consolidado entendimento nesta Corte Superior, com arrimo no enunciado 269 da Súmula de Jurisprudência do egrégio Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o Mandado de Segurança não pode ser utilizado como mero substitutivo de Ação de Cobrança" (decisão monocrática do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, em 15/08/2012).
Com isto, ele não só desautorizou os oito ministros que tiveram entendimento diferente, como cometeu a incorreção de alegar que havia sido olvidada uma questiúncula que, na verdade, a AGU já havia submetido ao relator anterior, Luis Fux, sendo por este fulminada em 19/10/2007:
"A determinação para que a autoridade coatora, in casu, o Ministro de Estado do Planejamento e Gestão, cumpra a requisição do Ministro da Justiça no sentido de efetuar o pagamento dos retroativos a anistiado político, não atrai a incidência das Sumulas n.ºs 269 e 271, do STF, porquanto, aqui, não se trata de utilizar-se do mandado de segurança como substituto da ação de cobrança, mas, tão-somente, de determinar o cumprimento de ato administrativo legal e legítimo".
E por que a AGU, na sua inexplicável insistência em postergar indefinidamente o pagamento do que é justo e devido para mim, recorre a alegações periféricas e evasivas, inclusive reapresentando-as depois de já terem sido categoricamente rechaçadas? Simplesmente porque, quanto ao fulcro da questão, não tem nada, absolutamente nada, para contrapor à sentença de 23/02/2011.

A Lei nº 10.559, de 13/11/2002, estabelecera o seguinte:
Art. 18.  Caberá ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão efetuar, com referência às anistias concedidas a civis, mediante comunicação do Ministério da Justiça, no prazo de sessenta dias a contar dessa comunicação, o pagamento das reparações econômicas, desde que atendida a ressalva do § 4o do art. 12 desta Lei.
§ 4o  As requisições e decisões proferidas pelo Ministro de Estado da Justiça nos processos de anistia política serão obrigatoriamente cumpridas no prazo de sessenta dias, por todos os órgãos da Administração Pública e quaisquer outras entidades a que estejam dirigidas, ressalvada a disponibilidade orçamentária.
A decisão do ministro da Justiça, em 30/09/2005, foi:
"Declarar Celso Lungaretti anistiado político, concedendo-lhe reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação mensal, permanente e continuada (...), com efeitos retroativos da data do julgamento em 27.07.2005 a 29.10.1996, totalizando 104 (cento e quatro) meses e 28 (vinte e oito) dias, perfazendo um total indenizável de..."
No início de 2007, 16 meses depois, eu ainda não havia recebido a indenização retroativa que deveria ter sido paga em 60 dias, daí minha decisão de impetrar mandado de segurança para que fosse cumprida a lei e a decisão ministerial.

Logo em seguida, a União enviou carta convidando-me a abdicar voluntariamente do direito ao pagamento imediato dos atrasados, aceitando voluntariamente seu parcelamento até o final de 2014. Como o meu mandado já tramitava e como este direito não fora esmola nenhuma, mas sim o justo ressarcimento do sangue que me derramaram, dos terríveis tormentos físicos e psicológicos que sofri, da lesão permanente que me causaram e da honra que me atingiram, eu optei por não desistir voluntariamente do processo já aberto.

É óbvio que, como a legislação não fora alterada, a Justiça necessariamente teria de mandar que a Lei fosse cumprida, como mandou.
E é chocante que a AGU use todo seu poder de fogo, infinitamente superior, contra mim, para evitar que uma decisão judicial seja cumprida. Pois ela tem um compromisso com a Justiça no sentido maior da palavra; não existe apenas para vencer a qualquer preço ou protelar o cumprimento de sentenças desfavoráveis arguindo ninharias, como fazem os advogados de porta de xadrez.

Então, Sra. presidenta, sua intervenção se impõe para pôr fim a esta nova via crucis, quando sou novamente vítima das burocracias arrogantes, arbitrárias e insensíveis, como já o fora quando requeri minha anistia na década passada e, embora o critério primeiro da priorização dos processos (desemprego) me beneficiasse, só comecei a receber minha pensão depois de exatos 50 meses, tendo de mover céus e terras para tanto, enquanto os amigos do rei e os famosos, mesmo não preenchendo as condições necessárias para terem seus casos priorizados, eram atendidos em menos de um ano.

Será vergonhoso para a União e contraditório com a política de direitos humanos dos últimos quatro governos se eu morrer sem ter sido ressarcido das violências cometidas por agentes do Estado em 1970 (!!!). Quarenta e quatro anos estão se completando. Quantos mais precisarei esperar? Terei de ser eterno para ver honrarem o crédito pendente desde 2005? 

Confiante em que o espírito de Justiça inspirará vossa decisão, subscrevo-me,

atenciosamente,

CELSO LUNGARETTI