Caro leitor,
Vou tentar colocar aqui o mais detalhado possível, tudo aquilo que aconteceu comigo, tudo o que vivi desde a minha infância de menor abandonado, de menino de rua e de ex-interno de colégios públicos.
Vou trazer a tona como nunca tinha feito antes, as historias reais da minha militância clandestina, do período que estive no Exercito e das minhas fugas na luta pela sobrevivência durante o período mais obscuro da história política do Brasil.
E, pasmem, sobre o atentado contra a minha vida que sofri logo após a abertura política.
A minha história de vida não é diferente da história de outros militantes anônimos que viveram aquela época.
Mais do que isso, vou comentar e testemunhar as intrigas de um pressuposto caráter ideológico de uma luta eleitoral, mentirosa e xenófoba de classe, que se estabeleceu a serviço do pensamento burguês.
Não sou nenhum escritor, na verdade apenas um aficionado pelas letras, por isso caro leitor, quando você encontrar algum erro dê-me um desconto, afinal, neste quesito eu sou apenas um aprendiz.
Estarei ao longo dos próximos meses escrevendo a continuidade deste artigo biográfico, que não termina nesta publicação.
Na seqüência das publicações, também estarei colocando aquilo que popularmente chamamos de “dar o nome aos bois”, ou seja, nominar os atores desses acontecimentos.
Deixo claro que não autorizo a reprodução do todo ou de partes deste artigo por mim escrito, salvo, se eu mesmo autorizar em documento próprio, por isso lhes aconselho a memorizarem o endereço do meu blog, ou a incluí-lo em seus favoritos se assim o desejarem.
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Também me reservo no direito de fazer as correções e alterações que entender necessárias, uma vez que se trata de publicação em blog, ficando as mesmas armazenadas na condição do “antes” e do “depois”, no seu local de origem.
Pretendo com toda modéstia, se assim surgir à oportunidade, transformar estes escritos em um livro biográfico.
Há muito tempo que eu estava amadurecendo a idéia de escrever uma espécie de autobiografia. Afinal, não são somente os “importantes” (sic) que tem este direito.
A minha vida sempre foi de altos e baixos, de tempestades e de calmarias, de tristezas e alegrias, e de felicidades de fato. E, eu sempre vivo com intensidade.
Eu sou de um temperamento bastante calmo, mas, na prática, me considero um alegre chorão.
Apesar de tudo, eu tenho aqui comigo guardado, e segredado no meu foro intimo, no meu coração, e no gene mental da minha consciência política, algo que considero de perfil doentio, xenófobo, criminoso e oportunista.
Por isso, resolvi trazer a tona para conhecimento público. Sei que isso não poderá mudar aquela arvore que já nasceu torta, mas servirá de alerta para o futuro.
Poderia se assim o quisesse fazer, levar as barras da justiça burguesa, este “algo”, que havia registrado, e que por conta do objetivo maior, abandonei-o para posterior julgamento.
Estávamos em plena efervescência das lutas sociais dos primeiros anos, logo após o término da ditadura militar.
Todos nós temos uma historia de vida que em muitos casos precisam ser contados, não somente pela sua importância histórica, mas também pelo fato de ter um espaço no tempo da nossa vida.
- Mas quem sou eu afinal?
- Será que sou aquele cara que pensam que conhecem ou querem que eu seja?
- Será que eu mesmo, na minha ingenuidade e na minha condição social projetei esta imagem, e ainda, sem me preocupar com o que pensariam, ou, com os eventuais resultados de tudo isso?
Fica cômodo dizer que conhecemos “alguém” apenas porque a encontramos algumas vezes. Conhecer de fato uma pessoa é outra coisa (sic).
- Ora, nós somos aquilo que queremos ser e, nada, além disso, mesmo.
Não aceito e não me conformo com o que sutilmente foi apresentado diante da minha realidade, e daquilo que realmente sou.
Sem a menor dúvida, atitudes oportunistas com objetivos de desmistificar, ou simplesmente de vender uma imagem do qual não é nem de longe minha semelhança enquanto sujeito social.
- Será isso uma falta de sintonia com a minha, e com nossa existência enquanto classe social?
Na verdade eu fico pensando, se ao menos estivéssemos vividos juntos, você realmente me conheceria. Refiro-me apenas aquelas pessoas que cruzam o nosso caminho por um destino profissional, do acaso, na escola, na faculdade ou mesmo em movimentos políticos e sociais como os vários que vivi, respiro e transpiro.
Eu não poderia estar pensando diferente se não estivesse sido julgado diferente.
Ora, o fato de termos convivido momentaneamente uma situação, não pode ser objeto do “eu te conheço” ou simplesmente “eu conheço ele”.
- Você me conhece de verdade?
- Eu diria que não, simplesmente por não termos vividos juntos cada momento de minha vida, que, aliás, por muitos anos esteve à deriva de acontecimentos do qual me deixei levar.
Desde a minha infância de judeu pobre que sou movido por um sentimento de contestação contra as injustiças sociais, do modo burguês de viver. Modo este, que não enxerga o seu semelhante, que não tem a capacidade de olhar o seu próprio umbigo.
Se perfeito fossem, não estariam criando regras sociais que lhes protejam no cerne da sua individualidade.
Não obstante, cruzam o caminho de agentes sociais de fato, discursando e manipulando um pressuposto objetivo coletivo, que, através de ONGs dissimuladas e de partidos de essência burguesa, escondem no seu âmago os verdadeiros interesses pessoais de objetivos privados.
Eu diria que conheci algumas ONGs que eram verdadeiras catapultas eleitorais de interesses particulares dos seus mentores.
Nas circunstancias dos fatos durante as lutas nos movimentos sociais recentes, pra mim, ficou evidente que os fatores ideológicos que propagavam, não passavam de artimanhas que ocultavam os seus verdadeiros amigos de um cenário previamente montado, que era naquele momento, o cerne do seu arco ideológico de sempre.
Basta olharmos no presente os arcos das alianças eleitorais que governam este país e, se fazem presentes nos processos eleitorais aqui no estado de Santa Catarina, principalmente na Capital. Os inimigos de ontem (?), são os amigos de hoje e de sempre.
Eis aí a camaradagem desenvolvida entre os velhos e os jovens dirigentes partidários da falsa esquerda, dos igrejeiros e dos “falsos pobres” com os velhos coronéis representantes dos partidos camaleões remanescentes da ditadura militar.
A igreja católica sempre foi um instrumento de manipulação a serviço da sociedade burguesa e do imperialismo internacional. Ela divide-se em duas alas, a secular e a progressista.
Infiltrada, busca através de sua participação nos movimentos sociais, o objetivo maior de se eternizar enquanto instituição. Na verdade, é a velha igreja católica e anticomunista, dos padres pedófilos, e dos inquisitores mentirosos, tentando sobreviver com as mudanças no mundo.
Ora, a sua opção pelos pobres a partir da Conferencia Episcopal Latino americana ocorrida no ano de 1972 na cidade de Puebla no México, é conversa para inglês ver no mais amplo sentido da palavra, um verdadeiro engodo ideológico.
Ai está à reforma agrária defendida pelos apêndices do capitalismo religioso, no marco capitalista da exploração de classe.
Defendem com unhas e dentes o pagamento de milhões de reais para latifundiários e grileiros, dentro das suas políticas de perfil ideológico, enganador, e previamente definido. Assim fazem também nas lutas políticas urbanas quando defendem o modelo capitalista de reformas.
Suas estratégias de luta estão a anos luz dos interesses vitais da classe trabalhadora, caracterizando-se como objetivos “oficiais” do clero excepcionalmente pedófilo, terrorista e pernicioso.
As suas ações políticas, manipuladoras e criminosas, representam o fortalecimento do caráter democrático-burguês de viés capitalista das lutas do campo e da cidade.
Mais do que isso, tornam-se uma alavanca para a perpetuação das injustiças sociais, ao defenderem o modelo capitalista de reforma agrária.
Esse grupelho de teólogos católicos incrustados nos movimentos sociais está comprometido até a medula óssea com a eternização de sua instituição, maquiavélica e inquisitória.
Essa ingerência histórica também representa indubitavelmente uma vertente oportunista e anticomunista, baseada na teoria “exegética” mentirosa da opção pelos pobres. Eis ai o canto de sereia trombeteado pelos capitalistas de batina.
Os grandes depósitos de terras ociosas que aguardam valorização para a especulação imobiliária são os seus aliados ocultos.
Se no sistema capitalista brasileiro expresso na carta magna, a terra tem de cumprir a sua função social, a expropriação é a medida certa.
Historicamente são todos velhos amigos sentados em poltronas diferentes, com discursos diferentes, mas nitidamente, com objetivos siameses.
Foda-se... São inocentes úteis para os interesses do pensamento burguês do qual a corja representa.
Não foi obra do destino esta impertinência que desenvolvi no gene mental da minha consciência política.
Mas como é sabido de todos, tudo tem algum começo e um preço, e o resultado disso, talvez nunca saibamos, mas eu vou viver na busca eterna da justiça social. Não tive e nunca terei medo de lutar por aquilo que considero moral e socialmente justo, de lutar pelo socialismo na sua plenitude, e mesmo que por incompreensão dos que nos cerca, eu coloque minha vida em risco como em outras vezes.
Eu me lembro muito bem, na verdade, desde que passei a me ver como elemento vivo, desde quando me enxerguei como um ser racional e, por conta disso, vou tentar colocar alguns focos daquilo que muito pouco eu vivi contigo, e intensamente vivi comigo mesmo.
... Era uma casa amarela, tinha várias camas, talvez uns quatro beliches. Éramos umas três ou quatro crianças e alguns adultos, talvez duas mulheres e um homem.
Sinceramente, eu não me lembro de ti naquela imagem que ainda vive dentro do meu gene mental, preso nesta parte da nossa, ou da minha história que não consigo decifrar.
Havia em frente da casa um moirão de pedra, tipo ao de paralepípedo com mais ou menos um metro de altura. Junto deste moirão tinha uma torneira onde algumas pessoas iam pegar água com baldes e canecos. Esta imagem me intriga.
Onde estava ou está localizada esta casa?
Sinto um vazio muito grande que paradoxalmente, ainda assim, aperta o meu coração, sempre que me vem esta lembrança. Estariam ali os indícios de meu cordão umbilical?
- Quem eram as pessoas que viviam na casa?
Estaria na minha memória a idéia de que ali seria uma espécie de creche ou a casa de algum conhecido daqueles progenitores que nunca conheci?
O homem, eu o chamava de tio, mas, as outras pessoas, eu não consigo dar a elas uma ligação comigo.
... Estávamos num carro de boi que era puxado por duas duplas bem tratadas. O homem ao lado eu penso até hoje ser o meu avô. Tinha os cabelos brancos, lisos e compridos que chegavam abaixo dos ombros. Ele conversava muito comigo, às vezes parávamos para comer rapaduras, tomar café e comer um tipo de carreteiro (arroz com charque). Aquela viagem parecia interminável, duraram vários dias. Acho que eu estava sendo levado para algum lugar, porém, não consigo encontrar o ponto de partida.
Este homem de cabelos brancos e lisos era do tipo índio, cor de cuia como eu, alto como os meus 1,76 de altura. Eu me sentia muito bem ao seu lado. Possivelmente eu tinha uns quatro ou cinco anos de idade. Seria ele meu avô ou o meu próprio pai?
...Eu estava lá naquele internato há algum tempo. Eram cerca de vinte crianças, a maioria abandonadas ou filhos de pais sem condições de criá-las, talvez o meu próprio caso. Ali existia uma cozinheira do tipo Alemã, bem alta e gorda, olhos azuis, cabelos lisos e de temperamento muito brava. Chamava-se Tereza.
Essa mulher exercia o papel quase que de monitora, pois a verdadeira, era uma senhora que soube há uns anos atrás que havia falecido aos 92 anos de idade. Nós a chamávamos de “sinhazinha”. Na verdade, esta sinhazinha era mãe daquela que conhecíamos como tia Emília. Talvez, esta sim a possível diretora daquele internato chamado “Lar São Domingos” que estava situado no Bairro Menino de Deus em Porto Alegre. Tia Emília era como se fosse à mãe de todas as crianças que ali estavam.
Certo dia tia Emília me disse, você está muito magrinho Carlinhos, coma este pãozinho com mel, você vai ficar mais alimentado.
Tia Emília realmente conhecia cada um de nós que ali vivia. Todos os dias ela trazia alguma coisa diferente pra eu comer, e de fato, eu era muito magrinho, quase subnutrido.
... Estava trabalhando de cobrador de ônibus numa empresa de Porto Alegre, (foi um período muito curto nesse trabalho), O ônibus parou no bairro Azenha e subiu uma senhora gorda que já não era tão jovem como antes. Nós fazíamos a linha “Glória via Embratel”, e seguramente ela desceria no morro da Embratel.
Ao passar na catraca Dona Tereza exclamou:
De fato, me lembrei prontamente das vezes que ela me batia com uma pá de mais ou menos um metro de comprimento que usava para fazer as paneladas de “polentas” e mingaus para nós.
Lembro-me que um dia ela havia colocado uma barata morta dentro de um copo de mingau de farinha de milho.
Eu emborcava o copo goela abaixo e no fundo encontrei a barata, cheguei a senti-la na minha boca, meu estomago saltou inteiro pra fora, vomitei até a minha alma.
Dona Tereza me olhava e morria de rir, quase se urinava de tanto rir. Dona Tereza me parece hoje que na época teria uns 35/40 anos. Depois desta cena inesquecível, me deu uma “tunda” com aquela pá.
Dizia: Seu ordinário vai limpar o chão que está sujo com tua porcandade. Puxava a minha orelha, me dava tapas na cara e puxava os meus cabelos. Ela era assim com várias crianças. Enfim, criei uma triste lembrança daquela mulher.
- Respondi a ela: Não, não lhe conheço.
- Então ela disse: Você não se lembra de mim Carlinhos? Não se lembra de mim lá do Lar São Domingos?
- Eu voltei a dizer: Não lhe conheço e, por favor, vai passando a roleta que tem gente querendo passar.
Eu sei que é você Carlinhos, você não mudou nada mesmo.
Eu voltei a lhe dizer: Não lhe conheço senhora, e, por favor, vai passando.
Ela me olhou entristecida e saiu mais pra frente do ônibus lotado. De vez em quando ela me olhava e abaixava a cabeça. Eu a havia reconhecido, mas o rancor que sentia daquele acontecimento me fez desprezá-la, seguramente. Menos de trinta minutos e ela desceu no morro da Embratel, local que provavelmente residia. Eu nunca mais a vi.
Mas sinceramente, se o tempo volta-se, e, se fosse possível novamente aquele momento, eu diria: Tudo bem Dona Tereza, estou lembrando muito bem da senhora sim. Como vai, tudo bem?
... A Fazenda era muito bonita, havia um enorme cata ventos que parecia uma torre, típico aquelas que existiam no interior do Rio Grande do Sul (hoje parecem que são raras, quase não as vemos mais).
Naquele dia eu estava de aniversário, lembro que uma senhora que morava na própria fazenda, deu-me de presente uma drusa de pedras de ametista, um recorte de uma fazenda de brim toda enxadrezada e uma varinha de marmelo. A festa foi bastante simples, mas não faltaram o bolo e sucos. Eu perguntei para aquela senhora porque eu tinha recebido aquela varinha de marmelo de presente?
Pense numa varinha de marmelo, eu nem precisaria ter perguntado...
Estávamos nos anos 50, e aquela fazenda, eu me lembro, ficava em Santiago do Boqueirão, minha terra natal.
Viviam ali na fazenda várias pessoas. Lembro-me do Ataliba e de outra tia que sentia ser verdadeira, mas, não recordo o seu nome. Tenho a impressão de ter nascido ali naquele local, já tentei ligar esta lembrança com a viagem que fiz numa carreta puxada por bois, acompanhado de meu pai ou de meu avô, mas também não consigo ligar os fatos.
Ali na fazenda havia um rapaz bastante familiarizado que periodicamente aparecia por lá fardado, ele era filho da casa e eu o chamava de tio Brasil, provavelmente o seu nome de guerra.
Santiago é uma cidade do Centro Oeste do Rio Grande do Sul, que fica a uma centena de quilômetros da fronteira com a República Argentina. Ali na cidade existe até os dias de hoje, mais de uma dezena de unidades militares de todas as armas do Exercito Brasileiro.
... Íamos dentro de um automóvel bem conservado e bonito, era pelos idos dos anos 60, em volta da estrada, havia muitas arvores mato fechado mesmo, a estrada estreita por vezes passava entre os prados.
A fazenda era bastante grande, ficava no município de Barra do Ribeiro no Rio Grande do Sul (aquele município onde as campesinas destruíram um laboratório de plantas bandidas). Na fazenda havia muitos cavalos, gado e outros animais. Havia também uma escola lá dentro, e foi lá que eu fiz o 1º ano do primário.
Esta fazenda existe até os dias de hoje, e chama-se “Fazenda São Pedro”
... Estávamos a cavalo e eu me lembro que caí, mas logo me levantei, olhei para o lado e avistei um ninho grande de Emas? Naquele ninho havia mais de uma dezena de ovos, e eram grandes mesmo. O capataz que tinha uma faca e um revolver na cintura me disse: Sobe na égua, senão a avestruz vai correr atrás de ti.
- Eu estava na cocheira dos cavalos, no chão, várias pombinhas, imediatamente fechei a porta que era inteira sem frestas. Eu pegava os estercos mais firmes dos cavalos e atirava nelas, até que acertei uma que caiu. Quando me aproximei, ela voou, e neste momento alguém me chamou: Sai daí menino arteiro, vai já pra dentro de casa.
Quase todos os sábados eu escutava um programa na Radio Guaíba. O programa tinha um nome vinculado ao “Brim Coringa” e apresentava músicas gauchas. Judith escutava assiduamente este programa, e de camarote, todos que estavam a sua volta. Ela era uma senhora de mais ou menos 60 anos, simpática, bonita e elegante ao se vestir.
Judith era brava, mas também tinha o seu lado generoso, afinal, acabara de adotar um casal de irmãos, eu e a Maria.
Maria tinha mais atenção por parte dela, talvez por ser menina. A vida na fazenda passou pela minha cabeça como o “Cometa Halley”.
Tenho guardado em meu coração e na minha mente as boas lembranças de outra “sinhazinha” que vivia lá na fazenda São Pedro e me tratava como um verdadeiro filho.
... Estava caminhando no pátio do Educandário Rural Nehyta Martins Ramos quando repentinamente levei um soco no lado direito do rosto. Foi um menino com o apelido de “barata descascada” que havia me agredido. Não tive nem tempo de reagir, levei uns sopapos e tive de sair correndo pra não levar mais. Ali estava mais uma das instituições pelo qual eu havia passado.
Tentei varias vezes pegar o “Barata” de “porrada”, mas incrivelmente o sujeitinho tinha se tornado meu amigo e pedido desculpas pelo acontecido. Disse-me ter sido um engano gerado por uma desavença entre ele e um grupo de menores, enfim, ficou daquele jeito mesmo.
Antes, porém, eu passei pelo Instituto São Joaquim, na verdade, eu estava internado ali quando sai uma primeira vez e fui adotado pela família da Judith. Depois de ter sido devolvido ao mesmo Instituto, fui transferido para outro colégio ou abrigo de menores (?), ele tinha o nome de Instituto Padre Cacique. Definitivamente eu havia sido entregue novamente aos cuidados do estado
Do Instituto Padre Cacique eu tenho vagas lembranças.
Nesta instituição eu fiquei apenas algumas semanas. Durante minha permanência transitei entre as oficinas de carpintaria e de tornearia que eram utilizadas para a formação profissional dos internos, com idade já na adolescência. No meu caso, fui encaminhado para o Instituto Nehyta Martins Ramos, por não estar com idade adequada. Pareceu-me que ali era um abrigo para menores infratores, o que não era o meu caso.
O tempo foi passando e eu fui crescendo ali no Nehyta Martins Ramos. O “Aranha” era um guri forte que batia em qualquer um no internato. O cara era uma massa muscular pra idade dele. Na verdade Ali no Educandário tínhamos que estudar pela manhã e a tarde ir para roça, para os chiqueiros, o aviário, para o pomar ou mesmo para a horta, e o Aranha era o que pegava os serviços mais pesados ali naquele Educandário Rural.
Um fato que até hoje me chama a atenção como modelo de política publica para menores, foi à produção de sonhos e pasteis que aquele tipo de Educandário produzia. Todos os finais de semana eles relacionavam um grupo de menores que saiam pelo bairro vendendo a produção da semana. Nós vendíamos também batatas- doce, aipim, cenouras, abóboras, melancias e, outras frutas e legumes, além de frangos vivos.
A horta, o aviário e os pomares do Educandário eram realmente um referencial para qualquer tipo de instituição pública para menores. A direção do Educandário fazia o pagamento semanal de comissões em dinheiro vivo para cada um que fosse vender os produtos. Isso era a forma que encontravam para incentivar e arrecadar fundos para o educandário.
Na verdade esta renda era utilizada para financiar ou custear as nossas festas juninas, de páscoa e principalmente as dos natais e finais de anos que pra mim são inesquecíveis.
Eu nunca recebi no Educandário Rural a visita de quem quer que seja (não tinha parentes), mas, eu nunca vou esquecer os presentes de natal que recebia. Alguns internos recebiam a visita dos seus pais e familiares. Eu já estava acostumado com aquela situação.
Algumas vezes um ou outro amigo me convidava para ficar juntos de sua família e, eu ia sem nenhum tipo de constrangimento. Já estava vacinado contra a solidão. Quando chegavam as festas, juninas ou natalinas, o Educandário se movimentava por inteiro nos preparativos. Ficavam tudo limpo, as hortas os pomares as roças, o aviário, os chiqueiros e o curral ficavam como novos no sentido amplo da palavra.
Na nossa ceia de natal havia leitões assados, (inteiros) perus, frangos, coelhos, ovelhas carne de gado e várias iguarias. Numa sala ampla ao lado da recepção do Educandário eram montados todos os anos uma grande arvore de natal, toda enfeitada, muito linda mesmo. Os presentes não cabiam em baixo da arvore, que mesmo sendo grande, eram colocados num canto da sala e empilhados de forma ordeira por ordem alfabética. Minha surpresa era sempre uma grande surpresa.
Dona Miriam que era a esposa do diretor começou fazendo a chamada dos internos.
Mais a frente havia um revezamento, e outro funcionário fazia a chamada. O próximo a fazer a chamada foi o diretor, que de verdade, eu o admirava muito por sua sinceridade e pelo humanismo que despertava no tratamento aos internos.
Quando me chamaram pelo nome: Carlos Alfredo... Foi uma alegria total, eu abri o pacote na frente de todo mundo, ali mesmo. Outros meninos também faziam o mesmo. Dentro havia uma cinta de couro com uma fivela colorida, dois tubos de talcos perfumados e mais um para chulé, quatro sabonetes, dois pares de meia, duas cuecas, um espelho, dois pentes confeccionados com chifre de boi e, um bonito e brilhante cartão de natal. Eram natais inesquecíveis.
Todos os internos recebiam os presentes de maneira igualitária. Quando recebíamos em mãos, logo surgia uma longa salva de palmas, vários parabéns e abraços, era alegria total.
Nas viradas de ano tudo se repetia. Eram mesas fartas, cheias de frutas, carnes, sucos e refrigerantes.
O Diretor da época era o Sr. Fulton de Souza Marques. Bem, eu não me esqueço dele porque comecei a fumar cigarros com as baganas que ele soltava nos cinzeiros ou nos vasos de plantas. Incrivelmente, ele era observado diariamente por um grupo de uns cinco meninos ávidos por fumar.
O seu Fulton soltava a bagana e sem que ele visse, nós corríamos disputando a baguinha do Hollywood que ele soltara. Mas, sinceramente, não brigávamos entre nós, cada um se contentava em dar uma ou duas tragadas e ficava tudo bem. Eu iniciei a fumar com 14 anos. Vale lembrar que durante o meu tempo no Exercito, fiquei quase dois anos sem fumar. Eu não sou fumante desde o ano de 1989.
Certo dia depois de alguns anos crescidos na hierarquia do respeito (sic) entre os internos do Nehyta (fui crescendo e me tornando respeitado no sentido de não ser provocado), na verdade podia pegar qualquer na “porrada”, e sem medo de apanhar como antes acontecia. Faltava apenas “Aranha” que a muito pretendia me bater, falava pra muitos meninos que um dia ia me dar uma surra, mas hesitava. E, não era por menos, dos 12 aos 14 anos eu já estava praticamente preparado para a vida. Tinha vivido um pequeno período na rua como menor abandonado. Também já tinha passado por várias instituições.
Perdi as contas das quantas vezes que apanhei de estranhos tanto na rua quanto ali nos internatos.
O tempo foi passando e eu fui crescendo ali no Nehyta Martins Ramos. “Aranha” era um guri forte que batia em qualquer um no internato. O cara era uma massa muscular pra idade dele. Na verdade Ali no Educandário tínhamos que estudar pela manhã e a tarde ir para roça, para os chiqueiros, o aviário, para o pomar ou mesmo para a horta, e “Aranha” era o que pegava os serviços mais pesados ali naquele Educandário Rural.
Um belo dia “Aranha” me desafiou, tentou me dar um soco que eu revidei acertando-o no olho esquerdo. O Educandário inteiro parou para assistir a briga. Levei uma boa vantagem sobre “Aranha” que saiu com a cara inchada. Não conseguiu me bater.
Anos depois já fora da instituição, nos encontramos no exercito. Eu havia servido em uma unidade de Artilharia, e posteriormente fora re-incluido em outra de infantaria, e, foi nesta que nos encontramos.
Era quase religioso para a direção do Educandário Rural Nehyta Martins Ramos, todos os anos, no período de verão, nós íamos acampar na praia do Lami. O acampamento acontecia com barracas enormes do tipo as utilizadas pelo exercito, aquelas de campanha onde são instaladas as cozinhas ou enfermarias.
A comida era muito farta, frutas, verdura e legumes de nossa própria horta. Estes modelos de instituição imaginam que, atualmente não existe mais. Mas confesso, se existissem nos dias de hoje, muitos menores infratores ou abandonados estariam melhores encaminhados.
Eu me lembro de um verão nos anos de 1966/67, estávamos caminhando pelo mato numa espécie de trilha, na verdade, não muito longe do acampamento, quando vimos um grande número de bugios. Um desses se desprendeu do grupo e ficou encurralado em cima de uma arvore. O monitor que nos acompanhava era o seu Romildo (um paulista que fazia questão de dizer sua origem).
Seu Romildo era um cara que hoje posso imaginar que tinha uns 35 anos naquela época. Ele se aproximou da arvore e sacou um revolver calibre 32 (nunca esqueço o calibre por conta de um incidente) e deu alguns tiros no animal que mesmo ferido conseguiu fugir.
Naquela época nós não tínhamos uma consciência ecológica ou de preservação dos animais como se tem hoje. O Bairro de Belém Novo e do Lami eram muito bonito e característico, quase um vilarejo de nativos dali mesmo. Os internos do Nehyta eram conhecedores de toda aquela região, que incluía o Belém Novo, o Belém Velho, o Chapéu do Sol, a Restinga, o Cantagalo, o Lami e Itapoã. A ilha das pombas era um dos pontos que mais freqüentávamos.
Um fato que me levou ao passado foi há poucos anos atrás quando retomei meus estudos. Estávamos na biblioteca da escola e eu pude assistir a um vídeo que contava a historia da Ilha das Flores.
Ora, eu conheci quase que por dentro as plantações de melancias, de tomates e outras frutas daquela família de japoneses que aparecem naquele vídeo. Na verdade aquela propriedade ficava em frente aquilo que chamávamos de “Morro do Breno” em alusão a família de Breno de Caldas Junior (então proprietário do jornal Correio do Povo, de Porto Alegre) que tinha uma casa enorme lá no topo.
Quantas vezes eu entrei nas plantações da família dos japoneses para comer melancias, e outras frutas que eram plantadas por eles. Um dia eles nos flagraram e saíram dando tiros de sal para cima com o objetivo de nos assustar, e conseguiram, afinal, nunca mais entramos ali.
Nunca vou esquecer-me das vezes que em um grupo de cinco ou seis guris íamos nadando até a ilha das pedras que ficava a centenas de metros da praia. Quando passava algum navio de carga provenientes do cais do porto do Rio Guaíba (centro de Porto Alegre), formava ondas, se fossemos surfistas, com certeza daria para curtir por alguns minutos, levando em conta a altura de quase um metro que se formava. Para nós que havíamos nos tornado exímios nadadores, aquelas ondas não faziam a menor diferença.
Alguns freqüentadores ficavam assustados com nossa investida para dentro do Rio Guaíba. Nadávamos a cerca de mil metros da praia, e isto realmente chamava a atenção dos banhistas.
Essa freqüência em ir à praia ou acampar, dos internos do Nehyta, era talvez o que mais contribuía para a harmonia dos mais de 165 meninos daquele Educandário Rural.
Era uma manhã de domingo, e neste dia, costumeiramente dormíamos até mais tarde. Como era um Educandário Rural, alguns internos estudavam de manhã e iam pra roça a tarde, outros faziam o mesmo de forma inversa. Quando chegavam os domingos, ai sim, que nós tínhamos essa regalia.
Eu era chefe de um dos dormitórios (esta pratica se aplicava nas mesas do refeitório, nas salas de aula) e, repentinamente escutei um tiro no dormitório a frente do nosso, um menino chamado silvestre tinha pegado o revolver do seu Romildo do armário onde o guardava e estava brincando com ele quando este disparou acidentalmente.
O Elias foi o menino atingido pelo tiro na coxa. Vi a sua expressão de dor quando adentrei no quarto. Naquele momento os dormitórios ficaram em polvorosa.
Não demorou muito e o seu Romildo apareceu apavorado. Não sei como, mas alguém chamou de imediato o Diretor. Seu Fulton tentou abafar o ocorrido e mandou o menino para uma enfermaria que existia no educandário para fazer a retirada da bala. Isto de fato aconteceu, mas eu soube mais tarde que alguns diretores do DEPAS (Departamento Estadual de Assistência Social, hoje encampado pela FEBEM) vieram investigar o ocorrido, que não deu em nada, além de uma advertência ao monitor.
Em 1970 após ter retornado para o Educandário, eu pedi para ser alistado no serviço militar. Eu já tinha saído do Nehyta pelo período de alguns meses no ano de 1969. Tinha ido para quilo que se chamava de Casa Lar. Havia umas cinco em Porto Alegre.
Normalmente essas casas eram dirigidas por um casal de adultos que se responsabilizavam por um grupo de 10 menores.
O estado ajudava nas despesas e os menores poderiam estudar e trabalhar fora. Naquele ano eu estava na Casa Lar que ficava no Bairro do Partenon, eu fazia o curso de garção no SENAC. Minha permanência ali foi fulminante, aliás, muito rápida, talvez menos de um ano. Tudo começou com uma briga provocada por um dos guris que eu desafiei no Educandário. Na briga do Educandário eu tinha me saído bem.
O Nilo já estava ali a mais de um ano no curso de garção. O professor conhecido como mineiro tomou as dores dele numa intriga do qual o Nilo havia começado. Na verdade eu flagrei-o tomando vinhos importados e ele me provocou pra eu ser excluído do curso, ele foi espertalhão e mau caráter. Éramos proibidos de consumir bebidas alcoólicas.
O Nilo sabia disso e Iniciou jogando uma bandeja de aço inox na minha direção. Quando o professor apareceu, ele disse que eu havia começado aquilo, que tinha iniciado a briga com ele. Enfim, fui desligado do curso no SENAC e posteriormente sai da Casa Lar retornando para o Educandário.
Certo dia eu encontrei o Professor mineiro no centro de Porto Alegre, e ele me pediu desculpas por ter sabido a verdade por outros alunos que presenciaram o acontecido. Mas pra mim, sua desculpa não serviu de nada, a turma do Nilo já havia se formado. Fui constrangido e injustiçado sem direito a defesa.
Foi Ali no Nehyta que decidi pela minha emancipação, já não agüentava mais aquelas idas e vindas de uma instituição de menores para outra por qual tinha vivido.
Eu conversava muito com o meu professor de Ciências Sociais, na verdade eu também o admirava muito. O professor Lafaiete comentava a boca pequena para os meninos maiores o que acontecia no Brasil. Ele fazia isso de maneira amena, tocava no assunto de forma sutil. Dizia que eram os militares que mandavam no Brasil, e que ele não achava isso correto.
Um dia eu comentei com ele que queria sair dali do Nehyta e, ele disse que eu poderia se estivesse alistado para o serviço militar. Embora tivesse contrariedades com o regime, me aconselhou como sendo a única forma. Disse-me que depois de um ano eu estaria mais preparado pra vida e poderia levá-la sem sobressaltos. Fiz o que ele aconselhou e me alistei prematuramente no serviço militar. Como não tinha idade para o serviço militar obrigatório, apelei para serviço militar voluntário. Era o ano de 1970, e eu tinha apenas 15 anos quando fiz meu alistamento. Acho que essa possibilidade não existe mais nos dias de hoje.
Definitivamente eu saí do Educandário Rural Nehyta Martins Ramos. Em março de 1971 eu entrei para o Exercito. Do colégio, levaram-me até a rodoviária e embarcaram-me em um ônibus direto a Uruguaiana e, não me deram um centavo para comer qualquer coisa diferente na viagem.
Recebi uma sacola com a metade de um frango e farofa, dois pãezinhos e uma garrafinha de Grapette (acho que era esse o nome do refrigerante de uvas).
Chegando a Uruguaiana me apresentei no quartel do 22º GAC.
Nos primeiros dias eu notava a cara de espanto de vários graduados e oficiais. Não era por menos, afinal eu era um dos caçulas do quartel. Tinha incorporado com apenas 16 anos, mas eu não era o único caçula. Havia outro menino que ainda era dois meses mais novos do que eu, incorporamos no mesmo dia. Este garoto tinha recebido uma licença logo após ficar quatro meses no quartel, e desertou. Dois meses após foi pego pela Policia do Exercito em Porto Alegre.
O menino puxou 30 dias de cadeia e foi expulso. Tive a infelicidade de tirar guarda na cadeia do quartel em duas ocasiões em que ele estava preso. Eu Conversava muito com ele. Na verdade, como eu, ele era um menino soldado, e tinha de altura, o que o tornava mais baixo do Grupo de Artilharia.
Realmente, eu diria hoje, era apenas mais um garotinho fardado.
Eu fiquei com pena dele. Ele não tinha cometido nenhum delito criminal além daquele de não ter retornado em tempo hábil para a unidade militar. Sua deserção não teve nenhuma conotação política igual a minha, ocorrida três anos mais tarde, e nem tampouco como as que costumeiramente ocorriam naquele período e eram abafadas pela Ditadura Militar. Ele foi entregue para a polícia civil que encostou uma viatura em frente da unidade. Nossa formatura foi de despedida para ele.
Minha vida foi intensa ali no 22º GAC. Nossa unidade era comanda pelo Tenente Coronel pára-quedista Dickson Melges Grael, um dos Falcões da Ditadura Militar, e que teve participação ativa no golpe de 1964.
O Coronel Dickson contava em reuniões fechadas os detalhes de sua ação quando invadiu o forte de Copacabana dando uma rajada de metralhadora pondo fim a resistência daquela unidade ao golpe.
Foram ali no 22º Grupo de Artilharia de Campanha que conheci as técnicas militares de Operações Especiais, de Guerrilhas e Contra Guerrilhas, Técnicas de Sobrevivência na Selva, Operações Psicológicas, de Contra Insurgência e de Assalto. Aos dezesseis anos eu já manuseava armas de grosso calibre, na verdade, armas de guerra nas suas mais variadas versões como explosivos, minas e armadilhas militares para usos em guerras prolongadas.
...Já havia passado muitos anos da ultima vez que eu tinha estado junto de minha irmã.
Foi durante aquela adoção, e, isto foi possivelmente no final dos anos 50 ou no inicio dos anos 60.
Em 1971 eu resolvi procurar minha família. Naquele período vivíamos em plena e efervescente ditadura militar.
Até ali eu já tinha passado por um processo de amadurecimento e de formação política, então proibitiva de se externar, afinal, toda e qualquer simpatia que alguém demonstrasse a favor da resistência civil seria brutalmente combatida, principalmente nas fileiras do próprio exercito.
Núcleo marxista-leninista
Foi ali no 22º GAC que me tornei simpatizante da resistência armada contra o regime militar, em especial, minha simpatia era pelos feitos heróicos do Capitão Carlos Lamarca e da Vanguarda Popular Revolucionaria.
Naquele período nós recebíamos algumas noticias através de informes dispersos que eram alimentados por alguns graduados descontentes com os rumos do país e as barbaridades cometidas pelo exercito. Alguns comentários eram feitos a boca pequena e de maneira oculta.
Minha luta a favor de mudanças continuava ali dentro da caserna. Organizávamo-nos num pequeno núcleo de simpatizantes. Muitas vezes não sabíamos quem eram o demais apoiadores. Os graduados sempre tinham esta preocupação.
O Regime militar alimentava um fanatismo político até mesmo nos elementos de hierarquia subalterna. Tínhamos que nos cuidar até de “supostos” amigos.
Neste período eu fazia parte de um núcleo político e militar que se formava em nossas fileiras há alguns anos. Nosso grupo era remanescente de militares simpatizante do então capitão Carlos Lamarca.
Este foi o período que mais coloquei em pratica tudo que havia aprendido na minha infância, na minha sobrevivência pelas ruas de Porto Alegre como menor abandonado, e como interno em instituições públicas. Nada melhor que a escola da vida. Se não fosse isso, eu não estaria aqui escrevendo em meus blogs aquilo que eu penso e vivi.
Eu diria que valeu a pena lutar. Diferente de muitos políticos oportunistas, estes sim, se vangloriam de forma arrogante, os feitos de milhares de brasileiros que no meio das massas populares se engajaram quase que anonimamente na construção da democracia e do retorno as liberdades. No meu caso, e de outros milhares, muitos anonimamente. Precisávamos pavimentar o caminho rumo ao socialismo, rumo a uma sociedade sem classes, sem explorados e sem exploradores.
... Segui uma busca incessante atrás de vestígios que me levassem ao encontro de alguém de minha família. Houve momentos que me desanimei porque não tinha nenhum vestígio para o começo, até que então tive a idéia de ir ao Juizado de Menores de Porto Alegre.
Tomado a decisão de ir atrás da minha família, de tentar encontrá-la, eu tinha de resolver outro problema. Como poderia buscar o meu pai e minha mãe, a minha irmã ou qualquer parente se o meu nome tinha sido trocado?
Este é um problema de foro intimo, de direito e de justiça que ainda me perturba nos dias de hoje.
... Ainda internado no instituto Nehyta Martins Ramos que fica em Porto Alegre, localizado precisamente na Estrada do Lami nº 1115 era este o nº na época no Bairro de Belém Novo em Porto Alegre.
Daquela instituição, fui levado ao 1º Cartório de Registro Civil de Porto Alegre e me registraram como Carlos “Alberto” Bento da Silva.
Ora, todos que me conheciam até aquela data, incluindo meus professores e até a direção dos internatos pelo qual havia passado, sabem que eu me chamo Carlos “Alfredo” Bento da Silva. Fiquei fulo da cara, mas eu não tinha como reverter aquilo estando ali dentro. Foram eles que determinaram e fizeram o meu registro civil de nascimento.
Eu ainda era um guri de apenas 14 anos quando esta atrocidade aconteceu.
Possivelmente eu já tenha sido registrado em algum cartório na região de Santiago, mas não pude ainda investigar com mais profundidade. Recentemente, ou melhor, a cerca de três anos enviei um email no site de contatos da Prefeitura Municipal de Santiago/RS (minha cidade natal), solicitando informações através de nomes em IPTU, água, luz ou de outros documentos, que me trouxessem o paradeiro de meus familiares, coloquei inclusive algumas sugestões. Não foram capazes nem de me responder, pelo sim, ou pelo, não. A incompetência e a mentira são fatores existentes no site da cidade de Santiago.
... Estava servindo em Uruguaiana no 22º GAC quando pedi uma licença de oito dias para ir a Porto Alegre. Cheguei fardado ali no Juizado de Menores.
Entrando numa sala, fui logo perguntando: Como posso saber o endereço de minha mãe?
Perguntei para uma atendente que ali estava: Eu quero o endereço de parentes. Então ela me perguntou: Qual é o nome da sua mãe, do seu pai, o seu nome completo? Em seguida a atendente disse que precisava de tempo pra fazer uma pesquisa e, eu perguntei quanto tempo? Ela me disse: Até amanhã acho que já tenho alguma coisa em mãos (vale lembrar que naquela época não havia as tecnologias da informação que temos hoje). Tudo bem senhora amanhã estarei de volta, respondi.
Passei uma noite interminável, bastante tensa pelo que teria que fazer no dia seguinte. Assim que o dia amanheceu, tomei um banho, fiz a barba e vesti minha farda de passeio, afinal estava de licença pelo exercito e logo teria de voltar.
Caminhei apressadamente para o local onde estava sediado o Juizado de Menores, subi as escadas do prédio que ficava na Rua Coronel Vicente e entrei na sala.
- Bom dia, disse para a atendente. Bom dia me respondeu.
- Como é o seu nome mesmo?
- Carlos Alberto Bento da Silva, respondi.
- Bem Carlos, aqui não existe o seu nome, apenas outro que se chama Carlos Alfredo Bento da Silva.
- Eu sei disso, sou eu mesmo.
- Como assim? Esta possibilidade não existe aqui conosco, prontamente me respondeu.
Acontece senhora, que até os meus quatorzes anos eu me chamava Carlos Alfredo Bento da Silva.
Essa mudança de nome ocorreu contra a minha vontade e ainda estão me causando sérios problemas. Todos os meus amigos ali do internato, até o dia de hoje me conhecem e me chamam de Carlos Alfredo. Eu não sei por que trocaram o meu nome. A senhora pode olhar ai nos arquivos e vai ver que estou falando a verdade.
De fato, ela já tinha esse entendimento.
Após vários segundos de silêncio por conta do pensamento desenvolvido pela atendente, ela me perguntou: Qual é o nome de sua mãe? Prontamente respondi: Rosa Maria Bento da Silva.
A atendente ficou mais alguns segundos quieta intrigada e pensativa, e disse: Um momento Carlos, vou ali pesquisar alguns arquivos e já retorno (apontando para uma porta que dizia ser o arquivo daquela instituição).
Após vários minutos ela adentrou na sala um tanto pensativa e em seguida abriu uma pasta cinza e começou a folhear papeis, alguns em perfeito estado com indício de serem novos, outros tantos já meio amarelados e ainda outros apenas meros pedaços de papeis do tipo anotações informais.
Arquivo confidencial e criminoso
Enquanto a atendente folheava os documentos de forma lenta, demonstrava interesse peculiar no conteúdo. Neste ínterim, eu corria os olhos atentamente para cada linha que meu olhar alcançava. Em fração de segundos eu era capaz de memorizar cada detalhe, cada número ou cada escrita postada diante de mim. Tinha esta capacidade levando em conta os cansativos e contínuos treinamentos recebidos na unidade operacional do qual eu servia.
Às vezes alguns tropeços ou escorregadas, servem pra que possamos tirar uma bela lição. Foi assim comigo durante toda a minha infância. Sempre busquei tirar proveito das chances que me eram dadas.
Estava ali diante de meus olhos aquilo que sempre foi uma informação sigilosa, confidencial e proibida para crianças adotadas ou sob os cuidados do estado.
Ali estava escrito de forma bem legível.
Com os olhos mais rápido que as mãos da atendente, eu pude ler e, memorizar, que minha mãe não tinha condições morais e financeiras para me criar (sic).
No Brasil de hoje, fico a pensar se os critérios de antes são validados nos dias de hoje. Se os princípios ou os entendimentos se alicerçam nesta concepção de sociedade e família que vivemos (O Capitão Carlos Lamarca tinha razão por tudo que defendia). Não podemos aceitar a exploração de muitos para a felicidade de poucos.
Em outras palavras, mas com o mesmo sentido, não podemos aceitar a felicidade de poucos em detrimento de muitos, levando em conta que boa parcela da população é pobre e até paupérrima. Não poderíamos ter filhos?
A leitura que eu fazia, diante de meus olhos, a verdade ali escrita, e as resposta que eu buscava naquele momento e, que sempre me foi negada, me deixou atônito.
Assim que tive a oportunidade de perguntar para a atendente, não perdi a chance: Porque eu fui entregue ao juizado de Menores? Ela me olhou nos olhos e ficou quieta.
Segui na pergunta: Porque trocaram o meu nome? Ela hesitou em me responder.
E agora senhora, eu quero ter o meu nome de volta. E continuei a falar com um sentimento insuportável, com um nó na garganta, afinal estava fardado, mas por baixo daquele verde oliva existia um ser humano, um animal racional buscando os seus progenitores, minha família, minha historia. Buscando saber de onde eu tinha vindo e, quem era eu e quem eram os meus. Eram as perguntas que não poderiam mais ficar caladas.
A verdade que dói na alma
Mais do que tudo o que tinha vivido até aquele momento, eu me senti extremamente fragilizado, constrangido e vilipendiado no meu direito, de ser aquilo que qualquer pessoa sente, ou seja, um ser humano, com um nome próprio, uma família, uma autoconfiança, com os pés no chão.
Foi desesperador e difícil pra eu viver aquele momento. Eu tremia o corpo inteiro de baixo para cima, suava frio. Paradoxalmente, no fundo de tudo, eu sentia ter encontrado uma luz no final do túnel, mas, sinceramente, estava custando a acreditar. Estava tudo ali na minha frente.
Passado alguns minutos do impacto que senti pela informação roubada pela astúcia de meu olhar, eu fulminei outras perguntas: Quem foi que mandou trocar o meu nome e, por quê? E agora, como é que vou encontrar minha família?
A atendente que mais tarde identifiquei como uma espécie de assistente social dos dias de hoje, me respondeu: Você terá que entrar na justiça para voltar a ter o teu nome antigo. E, continuando me disse: De Fato Carlos, o que você me relatou está correto. O nome de sua mãe, a cidade onde você nasceu, enfim, você fala a verdade, mas infelizmente terá de procurar a justiça para resolver esta questão.
Mas Senhora, respondi: Quem fez o meu registro foi o pessoal daqui do Juizado de Menores acompanhados de monitores lá do Instituto Nehyta Martins Ramos.
Como à senhora me explica o fato de estar escrito ai nesses arquivos, de eu ter feito todo o primário nas varias escolas do estado e da prefeitura. Veja ai nos documentos, meu nome é Carlos Alfredo Bento da Silva. Vocês me registraram com quatorze anos e não se deram ao trabalho de investigar se eu já sou registrado em outro cartório.
Vocês também não teriam como enviar-me pra uma adoção sem que eu tivesse uma certidão de nascimento, incluindo a adoção da minha irmã, e, isto aconteceu. Porque então eu tenho de entrar na justiça se o erro foi da própria justiça dos menores?
Depois que fiz essas colocações, à atendente ficou com uma cara assustada, me olhou nos olhos, minha farda, minha estatura dos pés a cabeça e ficou completamente perturbada pelos questionamentos que fiz.
Estava ali diante dela um menino militar fardado, lhe questionando os erros cometidos pelo estado do qual ela representava naquele momento.
Bruscamente ela saiu da sala e entrou em outra, eu aproveitei e corri os olhos por tudo o que eles alcançavam.
De volta à sala, ela entrou acompanhada de um senhor que se apresentou como advogado do Juizado de Menores.
No inicio da conversa o advogado que se chamava Dr. Porta Nova já foi logo falando: você tem de entrar na justiça pra voltar a ter o seu nome de volta, além disso, como ficará agora que você está no exercito? Você tem todos os documentos com este nome de Carlos Alberto Bento da Silva.
Continuando disse: Carlos Alberto é um nome mais bonito do que Carlos Alfredo, você não acha? Bem, eu disse a ele, Carlos Alfredo é o meu nome e isso basta. Se o erro foi de vocês, então terão de buscar solução, terão de corrigir este erro. Eu olhei nos olhos dele e disse: Meu nome é Carlos Alfredo Bento da Silva e é assim que todos me conhecem.
Se alguma coisa saiu errada, a culpa é de vocês, e o senhor está vendo ai nos arquivos o meu nome correto. Veja aqui nesta certidão Doutor, O nome de meu pai está como João de Tal, o que o Senhor acha disso? O que o Senhor acharia de ter o nome de seu pai como qualquer coisa de tal?
Ele não me respondeu, abaixou a cabeça e ficou lendo os documentos. No final resmungou repetindo que eu teria de entrar na justiça. A seguir ele saiu da sala deixando-me as sós com a atendente que nos olhava, aturdida.
Sem perder a postura eu fulminei uma derradeira pergunta: A Senhora pode me dar os endereços que estão anotados nesta pasta? Tudo bem Carlos, eu não poderia, em se tratando de uma adoção como a que ocorreu com você. Essa situação é complicada, mas eu vou te ajudar. Saiba que eu jamais poderia fazer isso. Os últimos endereços que temos aqui são esses, Rua Oscar Pereira nº..., Rua Barão do Amazonas nº..., sendo esses, aqui em Porto Alegre. Tenho outro, por favor, anote rápido, antes que entre alguém na sala, Rua Siqueira Campos nº..., na cidade Santiago.
Anotado os endereços, eu pedi a ela que me deixa-se ver o processo em minhas mãos, insisti, mas não fui atendido. Fiz uma ultima tentativa (já tinha guardado mentalmente algumas anotações informais que tinha visto). Gostaria de Saber o endereço da família que me adotou. Esta família continua com minha irmã? A atendente balançou a cabeça concordando. Passados mais alguns segundos ela me deu o endereço que ficava na Avenida Independência, exatamente ao lado de um tradicional teatro ali existente, muito próximo do Colégio do Rosário em Porto Alegre.
Ela voltou a me explicar que não poderia estar fazendo aquilo, mas sentiu que eu estava obstinado nessa intenção e resolveu me ajudar, mas me pediu sigilo do seu ato. Cá comigo, nem precisaria me pedir que ficasse de boca fechada (sic), afinal, ninguém saberia por mim a fonte que busquei.
Não pensei duas vezes, sai caminhando em direção ao endereço tão esperado. Durante minha caminhada fiquei imaginando minha irmãzinha Maria, como será que ela estaria?
Ora, seria impossível pra eu não estar preocupado com a dificuldade de ter acesso a este endereço, afinal de contas, segundo os rituais (regras) convencionados no Brasil sobre os processos de adoção, eu não teria de ter aqueles endereços.
Eu não deixei de pensar por um segundo sequer a possibilidade de ser impedido de conversar com minha irmã. Era notório que aqueles que nos tinham adotado estariam garantidos por essas convenções, e gozando do seu anonimato completo pelo resto da vida.
Raramente neste país de leis ultrapassadas, onde um pai ou uma mãe que eventualmente se encontram questionados moral e financeiramente pelo estado, voltariam a ter algum dia, os seus filhos de volta. Nos dias de hoje, as drogas químicas tem sido uma hecatombe contra as famílias e a sociedade como um todo, mas no caso de meus pais, a questão unicamente se resumia na miséria em que viviam. Este foi o entendimento que eu tive ao ler parte de um relatório postado em minha frente.
Ficam evidentes os contraditórios inescrupulosos do pressuposto moral, que no fundo mesmo, reflete um pensamento medieval do poder absoluto sobre os filhos, antes os pais, hoje, o estado.
Na verdade o processo de adoção no Brasil funciona semelhante a uma decretação da pena de morte para o relacionamento entre os pais biológicos e seus filhos. De verdade mesmo, trata-se de uma pena sem comutação, um atentado violento contra a família, contra os filhos e, o direito dos pais.
Posso entender que essas ações do estado em nome da suposta dignidade da criança, transformam cada um dos sujeitos sociais envolvidos, em um verdadeiro produto capitalista baseado na propriedade absoluta do ser humano. Na verdade, é um atentado contra os direitos humanos, contra o direito a vida dos filhos junto aos seus pais.
Esses entendimentos são verdadeiros subprodutos da vaidade inescrupulosa do ser humano, principalmente aqui no Brasil, e, uma ferramenta jurídica ultrapassada que jamais deveria existir na nossa sociedade.
No plano individual e coletivo, a unidade da família está acima de tudo, porque é a razão da nossa própria existência.
O mais paradoxal de tudo é que para os crimes de corrupção, crimes hediondos de toda espécie, de estupros praticados por padres pedófilos e vagabundos débeis mentais, seqüestros com mortes, cárcere privado, torturas, assassinatos de vulneráveis, infanticídios, além dos crimes de ordem econômica e inclusive os de lesa pátria. Um indivíduo criminoso ao cumprir as penalidades do veredicto, lhe é garantido em leis a sua reintegração na sociedade.
Em nosso país existem penalidades de várias formas para as empresas e empregadores que se negarem, e incentivos para os que vierem a contratar aqueles que já cumpriram suas penas.
Novamente eu pergunto: E uma mãe que por razões sociais ou eventualmente morais que vier a se recuperar, a se regenerar, a se reintegrar socialmente, não teriam o direito de estar junto aos seus filhos novamente? Neste caso, fica evidente o caráter individualista e privado dessas decisões de fachada humanista, de proteção ao menor e, que no fundo mesmo, trata-os como uma mercadoria confiscada de seus progenitores.
Peraí (sic), nós somos seres humanos que temos o direito natural de estarmos com nossos pais, independente dos erros que tenham cometidos no passado, seja moral, ou por uma situação econômica. De verdade mesmo, por qualquer que seja a condição, afinal, nunca é tarde para arrependimentos.
Então, vamos analisar e comparar uma situação que poderíamos dizer ser hipócrita?
Sem querer jogar merda no ventilador (sic), temos como exemplos as “correntes” pentecostais dos chamados “crentes” religiosos, que, segundo pesquisas recentes, representam quase 27% de todas as religiões existentes no país.
Eu já assisti a inúmeras vezes (e qualquer um pode fazê-lo, ao vivo e, também pela internet), aos “testemunhos” de pastores e obreiros que confirmam terem no passado demoníaco de suas vidas, cometidos crimes de toda ordem, incluindo aí homicídios, assaltos a mão armada, tráfico e consumo de drogas e até mesmo de estupros.
Durante os testemunhos demonstram com todo o ardor e de fé estarem arrependidos de tamanhas atrocidades contra si e contra os outros.
O que pensar então desses pastores e “fiéis” que no passado recente de suas vidas foram criminosos? Não teriam o direito de se regenerarem socialmente falando?
De recomeçarem suas vidas sem qualquer tipo de impedimento, constrangimento ou direito?
Estou falando de família e sociedade, de individuo e de comportamento, de uma situação do qual nem mesmo os seus autores poderiam ter o controle ou serem os donos da verdade. E, ai está...
Ser pobre, segundo vi ali nos arquivos, foi um dos motivos alegados para o nosso afastamento definitivo da família.
Assim sendo, entendo que fomos tratados como um produto confiscado no mais alto grau de uma ação ilegal e criminosa do estado.
Eu fico eternamente agradecido a aquela atendente, talvez uma assistente social, uma mulher que nunca tinha visto antes, (provavelmente uma mãe) e que, permitira pra mim o surgimento de uma luz no final do túnel, durante a caminhada que faço em busca da minha mãe, da minha família.
... Bati na porta e a sinhazinha me atendeu dizendo: Carlinhos, você aqui? Como chegou até aqui? Eu disse a ela que estava há muito tempo procurando minha irmã. Ela sorridente me deu um abraço bem forte, ficou feliz quando me viu, ela fora como uma mãe pra mim durante o período em que vivia como adotado por sua família.
Logo a seguir apareceu a Judith, aquela que me adotou como filho, ela ficou espantada, eu a cumprimentei (estava fardado) e, ela respondeu-me com educação. A seguir gritou Maria, venha até aqui, é o teu irmão.
Abraçamo-nos bem forte. Maria realmente ficou feliz com minha presença e me perguntou como eu estava, há quanto tempo eu estava no exercito, onde estava morando etc. Falei a ela que a procurava há muitos anos e não via à hora de encontrá-la.
Perguntei pra Maria se ela sabia alguma coisa de nossa mãe ou do nosso pai e ela disse que não sabia de nada, disse também que não sabia se eles existiam.
Senti que minha irmãzinha guardava uma magoa profunda a respeito de nossos pais.
Logo a seguir Maria me disse que tinha um namorado, que era noiva e iria se casar. Não demorou muito e eu notei a presença de um rapaz sorridente com minha presença. Maria me apresentou ele dizendo: Esse é o Sidnei, meu noivo, nós vamos casar. A seguir me convidou pra irmos a uma lanchonete ali próxima da casa, na mesma Avenida Independência onde vivia.
Depois de um longo papo nos despedimos e eu prometi voltar outras vezes. Minha licença do 22º GAC já estava terminando e eu teria de voltar para a cidade de Uruguaiana e me apresentar na unidade onde servia.
Muita gente fala que do serviço militar a gente guarda recordações para o resto da vida. Isto realmente é verdade. Porém, Eu gostaria de deixar claro que, isto não tem nada a ver com fatores ideológicos. Na verdade, no meu caso, aquela convivência independente destes fatores leva a estas lembranças. Fiz muitos amigos e amigas, namorei, amei e fui amado. Dos meus amigos, e daquela menina nunca mais soube noticias. Vivi com bastante intensidade na cidade de Uruguaiana.
Foi tudo muito bom durante minha permanência no 22º GAC. Talvez pela minha pouca idade (16 anos) eu fui bem tratado, mas em nenhum momento tive tratamento privilegiado por isso. Eu nutria um respeito muito grande pela hierarquia ali existente.
Muitas foram às vezes que observei a admiração que sentiam por mim pelo fato de eu ser caçula daquela unidade e me comportar com extrema personalidade.
Eu era bastante depreendido, esforçado e valente, ao ponto de ter sido escolhido por mérito militar como um dos integrantes do seletivo PELOTAR (Pelotão Aerotransportado) hoje conhecidos como PELOPES (Pelotão de Operações Especiais) na verdade, uma fração de elite de uma unidade militar específica. Eu seria capaz de nominar, mesmo passados mais de 35 anos, o nome de vários integrantes daquela unidade militar.
Lembro-me até hoje do Capitão Motta, pára-quedista e elemento Selva CIGS (comandante da nossa Bateria de Canhões), do Sub-Tenente Caputo, do Sargento Saldanha, do Tenente Luongo (Oficial R/1 pára-quedista e elemento Selva do CIGS) que era o comandante do PELOTAR, do Sargento Leiria, do Sargento Palmor e do cabo Nivaldo (Jogador profissional do antigo Ferrocarril de Uruguaiana), do 1º Sargento Cantilho que me tratava como um filho mais novo. O Sargento Cantilho era o Sargentiante da nossa Bateria de Canhões, ele vivia preocupado comigo no sentido de que eu suportaria ou não, tantos exercícios exaustivos pelo qual o PELOTAR era submetido.
O que ele não sabia era que eu vinha de uma vida dura, de fugas e de aprisionamentos em instituições públicas. Isso me tornou um menino esguio, quase um atleta, feito este, verdadeiro quando fiz parte da equipe juvenil de atletismo do Internacional de Porto Alegre. Aliás, eu estava lá na inauguração do Estádio Gigante da Beira Rio em 1969. Essa informação eu sempre as mantive em privado.
Sinceramente, não sei se foi porque eu entrei para o Exercito com uma vontade enorme de me emancipar. Eu tinha pressa de sair daquela vida desde a minha infância sofrida. Talvez por isso aquele período marcasse a minha vida.
Posso dizer que não me esqueço de tantos outros companheiros daquela época, independente de qualquer condição ideológica pelo qual mais a frente eu me distanciaria.
Ideologização das forças armadas
As forças armadas sofriam um processo de ideologização na sua formação e nas suas ações.
Essas condições doutrinárias, naqueles anos, eram impostas pelos oficiais formados na Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN).
Na verdade, essa incumbência formadora partia da Escola Superior de Guerra que mantinha laços fraternais com a Escola das Américas (no Panamá).
Por sua vez, a Escola das Américas (criada e mantida pelos norte-americanos) era freqüentada pelos falcões da Ditadura Militar do Brasil e de outras ditaduras existentes na America do Sul, incluindo ai, civis e militares. Este processo de ingerência dos Estados Unidos em países do Cone Sul era também uma ferramenta imperialista dentro da chamada teoria do dominó.
Essa teoria da chamada “guerra fria”, consistia em impedir o avanço do comunismo na região. A teoria entendia que se um país do regime capitalista se transformasse em socialista, os demais a sua volta, também se tornariam.
Mas, este é um assunto para outra matéria.
Eu jamais vou esquecer o meu primeiro dia de guarda. Foi no paiol do quartel. Eu era o guarda e o soldado Canazzaro era o reforço da guarda. Em suma, um ficava parado e o outro andando de um lado pra outro.
Repentinamente escutei um barulho no meio do matagal que ficava atrás do Paiol.
Nossa responsabilidade era enorme frente à situação pelo qual o Brasil passava. Essa ideologização do país sob o Regime Militar nos impunha obrigações supostamente militares, mas que no fundo mesmo, representava a sobrevivência da Ditadura Militar.
Ali no paiol do quartel estavam armazenados todas as munições e armas estratégicas do 22º GAC e de outras unidades da região. O paiol tinha uma construção subterrânea com temperatura controlada por equipamentos específicos. Na parte superior desta construção havia apenas uma pequena casa de pouco mais de 20 metros quadrados. O local era realmente bem dissimulado.
O Exercito sempre estava atento para eventuais ataques ou atentados. Não era por menos, tinha tomado o poder através de um golpe de estado.
A sociedade civil juntamente com setores políticos estava se organizando para acabar com aquele regime ditatorial.
Ali estava também a granja da unidade que ficava mais atrás do local.
... O barulho ia se fazendo cada vez mais perceptível.
Eu sussurrei: Canazzaro, você está escutando?
Ele respondeu bem baixinho: Estou Bento
Eu disse a ele, tome posição de combate (nem precisaria o Canazzaro já estava deitado no chão com o dedo no gatilho)
A seguir, eu escutei novamente, e vi um vulto alto e magro se esguiando por um capinzal bem próximo. Tive a impressão de que estavam em dois elementos. Os quase imperceptíveis barulhos tinham duas intensidades diferentes. Era como se duas pessoas com altura e pesos diferentes estivessem caminhando juntos ou próximos.
Este treinamento eu havia recebido nos primeiros dias de inclusão no seletivo PELOTAR de nossa unidade. A capacidade de identificar ruídos, à distância ou luminosidades, é um dos recursos que um combatente não pode desprezar.
Apontei o Mosque-FAL, (arma de fabricação alemã produzida no Brasil, modelo 1968, Calibre 7,62 e cinco cartuchos na câmera), respirei fundo, trouxe o gatilho até o descanso, coloquei o alvo no pé do casamento perfeito entre a massa de mira e a alça de mira que estava pronto para o disparo.
De repente o vulto corre fazendo um barulho mais forte, eu instantaneamente, apertei o gatilho. O tiro fez um estrondo ecoando naquela noite silenciosa. Era o turno de guarda mais puxado que existe no exercito (dorme-se pouco) Das 22h00min as 24h00min e das 04h00min as 06h00min, naquele momento deveria ser umas 04h15min da madrugada, recém tínhamos rendido a guarda. O elemento saiu correndo para o mato. Senti que se não estivesse atento seriamos surpreendidos.
Naquela época havia uma espécie de paranóia a respeito de ataques em unidades militares. Comentava-se que poderíamos ser atacados a qualquer momento. Eu, sinceramente, não sei se naquele dia isto iria acontecer, mas o fato é que a minha iniciativa foi presenciada pelo meu colega que mesmo com alguma dúvida aprovou o meu ato.
Numa fração de poucos minutos após o meu disparo, o Paiol tinha a curta distancia um pelotão de guardas armados e rastejando, e que a princípio se tornou difícil pra eu distinguir se eram nossos companheiros. Parecia que estaríamos sendo atacados, não hesitei.
- Eu gritei bem alto: alto Lá
O movimento daquilo que seria a tropa parou de imediato
- Novamente gritei: Quem vem lá, identifique-se.
- Sargento Saldanha, é a guarda, respondeu.
Avance a Senha voltei a gritar: feito isto, ele gritou para mim Avance a contra-senha.
Eu respondi, e imediatamente tornei gritar:
O Sargento caminhou para baixo de um poste luminoso e eu ordenei que viessem ao nosso encontro.
Os soldados fizeram uma varredura estratégica em torno do paiol, imediatamente formaram uma patrulha em duplas. Nada encontrando retornaram cerca de 10 minutos após. O Sargento nos elogiou pelo feito. Disse que tinha suspeitado de movimentos em frente à unidade a cerca de uma hora antes, e que nossa atitude tinha sido louvável.
No outro dia fomos elogiados por vários graduados e pelo comando da nossa Bateria de Canhões. Enfim, foi um fato que marcou o meu primeiro dia de guarda que só foi permitido após o período de formação. A partir de aquela data, passei a utilizar em missões externas e internas de patrulhas, uma pistola Colt 45 e o FAL 7,62 (Fuzil Automático Leve). Por vezes participei dos PC Trans (Postos de Controles de Transito, com barricadas em vários pontos da cidade de Uruguaiana.
Durante todo o ano de 1971 fizemos intensas manobras de treinamento militar, de guerrilhas, e contra guerrilhas. O PELOTAR era o que mais se movimentava nas frentes de treinamentos da unidade. Participei de manobras no Cerro do Jarau em duas ocasiões, e das manobras conhecida como Operação Ponche Verde. Em outras tantas simulamos a ocupação das cidades de Alegrete e Cacequi em operações relâmpagos de assalto.
Participei também de patrulhas mistas que incluíam efetivos da Brigada Militar, dos Fuzileiros Navais (grupamento existente naquela época), dos Cavalarianos (do 8º RC) e outros soldados do QG da Região. Esta formação era obrigatória na integração das forças de segurança que vigorava naquele período ditatorial do Brasil.
Naquele ano de 1971 aconteceram vários fatos que marcaram a historia recente e política do Brasil.
O assassinato do Capitão Carlos Lamarca pelo então major Nilton Cerqueira no Sul da Bahia e, que se vangloria até os dias de hoje. Parece que este sujeito chegou à patente de General da reserva. Confesso que esta foi a primeira vez que havia chorado por alguém que sequer conhecia pessoalmente, neste caso deixo de fora as vezes que chorei pelos meus pais que também não os conheci.
Lamarca tinha se tornado um ícone, um ideal a ser seguido.
Ainda neste ano, à morte de Zé Arigó em um acidente de carro. Zé Arigó (um mineiro) era considerado pela mídia da época como um médium-curandeiro que operava as pessoas sem anestesia, apenas com um canivete. Sua façanha era propagada até para fora do país. Sua morte provocou uma comoção nos seus seguidores.
O ano de 1971 foi bastante ativo do ponto de vista militar. Fiz alguns cursos de especialização, me inscrevi no curso de pára-quedismo ministrado pelo então Capitão Vitor Pacheco Motta, Oficial R/1 (AMAN), pára-quedista e elemento Selva. O Capitão Motta era o fundador do PARAFRON (Clube de pára-quedismo da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, na cidade de Uruguaiana. Ele tinha naquela época mais de mil saltos. O Capitão Motta também tinha sido instrutor de pára-quedismo nas Brigadas pára-quedistas do Rio de Janeiro.
Após vários dias de treinamentos contínuos em torres de saltos simulados, o Capitão Motta me convidou para irmos até o aeroclube de Uruguaiana, Junto conosco se fazia presente o 3º Sargento Saldanha que foi o primeiro a saltar. A aeronave era um modesto avião conhecido como teco-teco do tipo paulistinha.
Um mil... Dois mil... Três mil... Quatro mil... Cinco mil...
A cerca de mil e duzentos metros, uma bela vista das fazendas que circundavam a cidade, e do rio Uruguai que divide Brasil e Argentina. Não dá para esquecer o azul anil dos céus de Uruguaiana e uma visão esplendida da cidade Argentina de Paso de Los Libres. Quatro saltos com fita e um Brevê. Senta Pua!
Vale lembrar que o Capitão Motta foi também um dos mentores e especialista em operações psicológicas do exercito. Era considerado um oficial militarmente de confiança do Regime Militar.
Também fiz curso de operador de radio, de telegrafia e telefonia de campanha (que eram opcionais), todos na área militar. O curso que mais me envolvi foi o de operações especiais, este curso foi o que possibilitou a minha re-inclusão no exercito, fato acontecido no ano de 1972 no 18º Batalhão de Infantaria Motorizado, na verdade neste ano fiz todas as provas seletivas exigidas na minha convocação e ingressei em janeiro de 1973 – Neste período integrei a 2ª Cia de Operações Especiais, unidade de assalto e contra guerrilhas, formada basicamente por pára-quedistas, comandos de operações especiais e elementos Selva.
Aproveitando esse espaço eu disponibilizo esse texto que publiquei em outra ocasião.
ACONTECEU NO DIA 7 DE SETEMBRO
Todo dia 7 de setembro é motivo de festejos e alegrias para o povo brasileiro.
Mas este dia sete de setembro de 2007 me remeteu ao passado e fez com que eu não deixasse de comentar aquilo que durante muitos anos ficou reprimido nos meus sentimentos, dentro da minha cabeça e no gene mental da minha consciência política.
Hoje eu não tive coragem de ligar a televisão, o radio, ou de ler jornais.
Decididamente não estava querendo saber nada sobre as comemorações do dia da Independência do Brasil.
Todos nós temos um dia que marca a nossa vida, seja lá qual for o motivo, e eu não sou diferente de ninguém.
Por isso decidi trazer a tona esta historia que vivenciei de corpo presente nos idos dos anos 70. Era o ápice da Ditadura Militar e dos seus projetos mirabolantes de construção da Transamazônica, das usinas de Itaipu bi-nacional etc.
Na Indochina, os Vietcongs estavam próximos de imporem uma derrota humilhante aos invasores norte americano. E, na contramão de tudo, os russos buscavam a implementação da “Détente” enquanto os americanos apostavam no sucesso do SALT II. Era a chamada “Guerra Fria” em constante ebulição.
Neste sentido, os Vietcongs avançavam para a vitória final que alteraria sensivelmente a formatação da geopolítica no planeta. Suas técnicas de luta em guerra de guerrilhas, de vencer o inimigo pela exaustão e na luta permanente, estavam sendo disseminadas e aplaudidas, mas também temidas por vários Exércitos do mundo inteiro.
O todo poderoso Exercito norte americano sentiram na pele e foram à cobaia destes experimentos. Aqui no Brasil, o nosso Exercito, comandado pelo CIGS (Centro de Instrução e Guerra na Selva) de Manaus/AM, saiu na dianteira aperfeiçoando e associando estas novas técnicas de guerrilhas com as já existentes e, aplicou a da guerrilha dos Vietcongs no uso de “Armadilhas Punji”.
Na verdade, isto caiu como luvas num país de grandes florestas como a nossa Amazônia, e de dimensões continentais como o Brasil.
Não havia um único exercício militar de Sobrevivência, Assalto e Guerrilhas que eu tenha participado, e que não tivéssemos praticado as técnicas Vietcongs com o uso de armadilhas de “Estacas Punji” do tipo “Teto Baiano”, “Muro Malaio”, “Fura Cara”, “Quebra Canelas”, “Tiro Amarrado” etc. No Brasil, desde o inicio dos anos 70, estava aumentando a resistência popular contra a Ditadura Militar.
No mesmo período, o Exercito vinha ampliando a criação dos Batalhões de Infantaria de Selva, na formação de novas Companhias de Operações Especiais, de Batalhões de Pára-quedistas e de Destacamentos de fronteira.
Na verdade, o “gene” proliferador dessa expansão estratégica, era representado por oficiais e graduados formados nos Cursos de Comando, Sobrevivência e Guerra na Selva do CIGS, nas Brigadas Pára-quedista do Rio de Janeiro e também nos Grupamentos de Fuzileiros Navais da Marinha de Guerra. A Aeronáutica dava suporte em todas as operações realizadas.
Durante esta expansão, o Governo Militar aprofundava a repressão contra os grupos de resistência armada no Araguaia e também estabelecia uma forte ação contra as células da resistência urbana.
Com esta investida, a situação torna-se explosiva em várias unidades militares. E foi justamente neste período da historia, que me vi dentro do epicentro político e ideológico ali estabelecido.
Na unidade militar onde eu servia aquele sete de setembro de 1973, tinha sido um dia atípico em todos os sentidos, e fatalmente, tornara-se um prelúdio do que viria acontecer.
O nosso dia começou as 03h30min da manhã e parecia que nunca acabaria, foi uma eternidade. Acordamos no horário conforme havia sido programado no dia anterior. Rapidamente e de forma ordenada, tratamos de tomar banho, fazer a barba e vestir nosso uniforme.
Oficiais, graduados e praças se vestiam com coturnos especiais e impermeáveis de couro e lona com sobre-sola de aço, uniforme camuflado ou verde oliva, com suas boinas e emblemas estampados.
Na verdade, de acordo com a especialidade de cada um dentro daquela unidade de Operações Especiais. O entusiasmo da maioria era visto na velocidade dos preparativos.
Esta era a 2a Companhia de Operações Especiais do 18o Batalhão de Infantaria Motorizada (Porto Alegre/RS) conhecida naquele período da história do Brasil como a melhor e mais preparada unidade de elite do III Exército, que abrange os Estados do RS, SC e PR.
Aquele dia, aparentemente pareceria ser um dia normal como qualquer outro, exceto por ser o dia da comemoração da Independência do Brasil, o que pra nós na condição de cidadão seria motivo de orgulho em poder participar.
Enfim, estávamos todos preparados para o evento que como sempre, era mais uma oportunidade das Forças Armadas do Brasil e do Governo Militar de mostrarem a sua organização, disciplina e poderio bélico. Aliás, este era um dia tipicamente de atividades cívico-militar que faria uma boa propaganda da coesão e do controle do país pela Ditadura.
E, há muito tempo, eu já estava posicionado contra aquele estado de coisas (sic).
Na vida militar, ninguém tem hora certa para dormir ou acordar a seu bel prazer como na vida civil. Tudo é feito com muita disciplina e o militar tem que estar sempre preparado pra qualquer situação, a qualquer momento e em qualquer lugar.
Naquele dia 7 de setembro de 1973, foi muito diferente. Muitos dos nossos amigos e companheiros de farda demonstraram não estarem preparados para aquilo que internamente teria sido apenas uma fatalidade? Após as viaturas estarem simetricamente organizadas, fizemos uma ultima revista nos armamentos e nos apetrechos que usaríamos no desfile militar.
Essa é uma regra a ser seguida por qualquer unidade, e por se tratar de uma especializada em contra guerrilhas e de assalto, fazíamos o uso continuo de munição real num estado permanente de prontidão. Aos integrantes das outras unidades, este quesito era uma prerrogativa somente dos chamados “soldados do núcleo base ou prontos” ou quando estivessem em serviço.
No nosso caso, o mais novo integrante tinha no mínimo dois anos de serviço dentro da força. Seguindo no relato, já era cerca de 05h30min e após as viaturas iniciarem o deslocamento, pude observar atentamente o tamanho do aparato de combate ali concentrado.
Era fenomenal a quantidade daquele contingente sui gêneris e, fortemente armados e municiados que integrava a 2a Cia OP. Na carroceria de cada caminhão, por cima da cabine, estava postada num mono pé, uma metralhadora Browning ponto 50 de alto poder de fogo, (suficiente para derrubar helicópteros ou aeronaves de pequeno porte) e que estavam municiadas com cerca de mil projeteis.
Cada elemento de nossa viatura dispunha de um FAL (Fuzil Automático Leve) com 60 cartuchos, sendo 20 no carregador da arma e quarenta no cinto VO.
Outros elementos dispunham do FAP (Fuzil Automático Pesado), ou carregavam consigo os morteiros 81 mm com placas base e granadas. Havia também o transporte de dois canhões 57 mm. Os oficiais e os graduados portavam as metralhadoras Beretta 9 mm (recém incorporadas) e pistolas Colt 45.
Ainda compondo o arsenal individual e básico, uma faca de trincheira, duas granadas defensivas ou ofensivas e uma fulmígena, além de ração operacional para dois dias de combate. O nosso comboio era formado por 10 caminhões, sendo 8 de transporte de tropas, 1 de combustível e outro de suprimentos.
Além disso, acompanhava uma viatura do tipo “pipa d’água”, mais 4 pick-up’s armadas com uma metralhadora Browning ponto 50, cada uma ou as recém incorporadas e poderosíssimas metralhadoras MAG 7,62 (fabricação belga 1972) e ainda mais dois jipes sendo um com o comandante da companhia e outro de apoio e comunicações.
Também pude observar a diversidade de armamentos em outras viaturas do Batalhão, e dentre estes, eu pude visualizar em algumas viaturas da 1a Cia de fuzileiros (tropa regular) as já absoletas, mas mortíferas metralhadoras “Madsen” calibre 7,62 (padrão OTAN).
Estas metralhadoras de fácil transporte foram usadas em guerrilha e também como aramas antiaéreas por pequenos grupos de combate em vários conflitos pelo mundo afora, incluindo aí a guerra de Biafra na África.
Essas armas faziam parte do arsenal de muitos Exércitos do Cone Sul, e dispunham de um carregador na parte superior e um espalha chama que lembra um funil, na boca do cano de saída.
Passados alguns minutos de nossa saída pelo portão das armas nos fundos da unidade, entramos diretamente na Avenida Ipiranga. Já estávamos na altura da antiga fabrica de moveis Santa Cecília e no meio de uma curva acentuada, foi quando comentei (sem sair daquela posição uniforme) ao meu amigo Lima o seguinte:
- Pô Lima, ta faltando mesmo é alguma ação de verdade, quem sabe alguns tirinhos pra gente queimar a adrenalina né?
E sem se mexer do lugar, o meu amigo Lima respondeu:
- É mesmo Carlos Alberto, ia ser muito legal, isso ia agitar a rapaziada he he.
Não demorou mais que 10 segundos do nosso comentário quando escutei a primeira metralhada, imediatamente me abaixei num instinto de sobrevivência, o Lima fez o mesmo, mas outros, alguns eu pude ver, permaneceram imóveis.
É tudo muito rápido e de impulsos automáticos. Num primeiro instante pensei que estávamos sendo atacados? Fiquei confuso por fração de segundos quando visualizei de onde viam os tiros, vi claramente a aquele ponto de fogo em nossa direção.
A metralhada partia do topo de um caminhão da 1a Cia de fuzileiros que vinha atrás do nosso último caminhão. Talvez por sorte de estarmos exatamente no ponto alto da curva é que escapamos de ser atingidos, mas o mesmo não aconteceu com o caminhão que estava na nossa frente.
Em todos os treinamentos que havia recebido durante a minha passagem pelo Exercito, aquela situação me levaria a responder instantaneamente, aliás, a todos nós. Imediatamente várias viaturas de nossa companhia frearam, e outras ficaram quase que de lado em posição de combate. Cheguei a preparar o meu FAL em posição de tiro e com a intenção de pular da viatura, quando repentinamente escutei uma gritaria horrenda e generalizada.
O meu amigo Lima estava incrédulo diante do acontecido. Num primeiro instante não conseguia falar nada, ficou com os olhos esbugalhados e cara de pavor com o que acabara de ver. Os gritos vinham do caminhão de nossa companhia que estava bem a nossa frente, havia muitos companheiros estirados na viatura e gemendo de dores, completamente ensangüentados.
Num passar de segundos escutei a voz de comando do Tenente Siqueira (Oficial R/1-Selva), um jovem carioca de 24 anos que comandava nosso pelotão na companhia, e que bem alto gritava: Ninguém desce das viaturas que já estamos iniciando os procedimentos e fiquem calmos que está tudo sobre controle?
Neste momento eu vejo o meu amigo Soldado Rosa nos braços do Ten Siqueira e auxiliado pelo Sargento Lopes carregando nosso companheiro com o peito todo ensangüentado e, o que senti naquele momento é que ele já não estava mais aqui.
O Rosa era um sarará bem forte, se destacava muito nas missões que eram confiadas a ele, era o tipo de sujeito militarmente de confiança. Participávamos juntos dos treinamentos de combate corpo a corpo e dos ensinamentos de Karatê do estilo chotokan que recebíamos na 2a Cia OP do então campeão mundial da modalidade no ano de 1972, o mestre paulista e professor Luis Watanabe que estava radicado em Porto Alegre e tornara-se instrutor oficial de varias unidades de elite do Exercito.
O mestre Watanabe tinha varias academias em Porto Alegre, e eu cheguei a treinar algumas vezes numa dessas que ficava no Bairro Cidade Baixa, muito próximo da Avenida João Pessoa, mas não estou lembrado do nome da rua.
O nosso companheiro Rosa também tinha o seu lado descontraído, muitas vezes nós saiamos juntos com outros companheiros para aquilo que hoje a rapaziada chama de “balada”. O camarada Rosa era um sujeito muito extrovertido.
Fizemos parte duma turma num cursinho preparatório ao Curso de Formação de Sargentos. Estas lembranças eu guardo até hoje. Logo atrás da tentativa de salvarem o meu amigo, passou correndo outro grupo de oficiais e Sgtos de nossa Cia carregando mais uns feridos e neste momento também reconheceram o meu amigo Soldado Paixão (nome de guerra) com o pescoço e o rosto virado (sic) em puro sangue, o SD Paixão ainda se mexia e gemia muito. Soube mais tarde que o SD Paixão tinha levado um tiro que tirou um pedaço do seu queixo e outro transfixou o seu braço esquerdo.
A seguir várias viaturas de pequeno porte se enfileiraram e saíram em disparada levando os diversos feridos e os prováveis mortos em direção ao HGPA (Hospital de Guarnição de Porto Alegre). Apesar da confusão e do estado emocional que vivia naquele instante, consegui observar o grau de organização e disciplina que tínhamos apresentado diante daquela situação.
Aquela era uma situação inimaginável por todos nós e do qual jamais havíamos previsto, ou seja, sofrer um ataque de forças supostamente amigas?
Nosso comboio ficou parado não mais que 10 minutos, foi quando recebemos ordens de prosseguir em direção ao local do desfile. Foi muito difícil ver e, ter que suportar o estado emocional de nossa tropa frente ao acontecido.
Nunca tinha visto e, mesmo em outras situações semelhantes, ter que desfilar e compartilhar com os olhos cheios de lagrimas o sofrimento coletivo pela perda prematura de amigos. O dever imposto pela circunstancia nos colocava perfilados de forma mecânica diante de uma população alegre e ansiosa por assistir o desfile militar.
Não se comentava nada do acontecido, que, aliás, nem era permitido em conformidade com o RGE (Regulamento Geral do Exercito). A imprensa escrita ou televisiva local, não divulgou nenhuma linha sequer a respeito do fato.
Os oficiais e comandantes de pelotões de nossa companhia e das outras que compunham o 18o B.I. Mtz estavam tão incrédulos quanto ao restante da tropa e, agiam como se nada tivesse acontecido. Mas ninguém é de ferro, e de volta ao desfile logo após deixar nossos companheiros aos cuidados da corporação médica, pude observar o Tenente Siqueira fazendo um esforço descomunal para esconder as lágrimas, afinal, ele conhecia cada um de seus comandados.
O desfile continuou com os aplausos da população que enchia todos os espaços possíveis para assistir a nossa passagem e, festejar o dia da independência do país. De volta ao 18o Batalhão e durante a formatura da tropa, os murmúrios começaram de forma sutil.
O Coronel Brochado (sic) comandante do Batalhão fez um discurso elogioso ao nosso comportamento, mas nada nos confortaria ou acalmaria. Sobre o ocorrido, seus argumentos não me convenceram, ou seja, explica, mas não justifica.
Ninguém podia comentar o acontecimento, mas segurar a boca e a ansiedade da tropa era praticamente impossível. As primeiras informações corriam de maneira dispersa, mas eu particularmente só queria saber o nome do elemento que estava no comando daquela “Metralhadora Madsen”, que no meu entendimento e de outros companheiros, fora postado propositadamente para nos provocar o maior número de baixas possíveis, que alias, aparentemente seria fácil de dissimular.
Uma das maneiras era o de interpretar como se fosse algum acidente provocado pelo manuseio de um praça aparentemente despreparado.
Mas Isto não me convenceria o suficiente pra que eu tivesse este entendimento, já que ali naquele Batalhão, estava a Companhia número 1 do III Exercito. A sorte me ajudou, e eu consegui ver a cara do assassino dos meus amigos dentro da 2a Seção (de informações e contra informações) do Batalhão.
Ele conversava com o oficial encarregado do IPM, (Inquérito Policial Militar) e eu o reconheci. Este sujeito já era um soldado pronto, eu já tinha cruzado por ele em algum lugar dentro do quartel, mas não me lembrava onde, talvez pudesse ter sido na barbearia, na alfaiataria ou mesmo no Rancho do quartel, mas enfim, que importância ou, no que resolveria lembrar-me onde havia visto aquele canalha?
O tal sujeito, vergonhosamente havia sido apresentado como um integrante do período de formação, êpa (sic) se o bandido era um recruta (não era verdade) por que raios ele foi designado ao comando daquela metralhadora?
Dizem que o FDP ficou preso apenas por 30 dias. Tive vontade de “arrancar” as entranhas daquele covarde ou, de “empalar” o desgraçado.
O nosso ódio pelo sujeito era tão grande que seriamos capazes de arrancar ele e seus protetores da toca, como se arranca um tatu em fuga. Os facínoras se comportavam como se o acontecido tivesse sido apenas um acidente, ou mesmo uma fatalidade.
Mas o nosso grupo sabia o que verdadeiramente tinha sido armado. Após o incidente? A escala de serviços sofreu mudanças, e encerrado o IPM, o canalha nunca mais foi visto na unidade. Mas seguramente fora transferido e até mesmo promovido por aquela façanha macabra. Os motivos daquele suposto incidente (?), pra mim seriam fáceis de entender.
Vários integrantes de nossa unidade passaram por treinamentos especializados, fortes e contínuos com o objetivo de integrarem as forças do Exercito no combate a Guerrilha do Araguaia e em outras frentes no país. Essa tarefa já estava sendo vista como se fossem mandar a “Raposa cuidar das galinhas”.
Esta situação já é histórica no Brasil. Muitos militares e ex-militares integraram grupos de guerrilhas e de resistência em várias épocas da historia política do país. Sem fazer comparações ideológicas ou partidárias, posso citar o líder Osvaldão do Exercito do Povo no Araguaia (Ex-Oficial R/2 do Exercito Brasileiro), O Capitão do Exercito e ex-Senador Luis Carlos Prestes do PCB e que comandou a “Coluna Prestes”, O Ex Tenente (Expedicionário) Salomão Malina (um dos líderes da ala militar do PCB), o também Capitão do Exercito Carlos Lamarca, líder maior da VPR (Vanguarda Popular Revolucionara), e tantos outros oficiais, graduados e praças das Forças Armadas, que com suas vidas, construíram a historia da resistência no Brasil.
Na continuidade do relato, o comandante do “Pelotão assassino” da 1a Cia de Fuzileiros tinha sido exatamente o 1o comandante de meu pelotão na 2a Cia Op. depois do acontecido, eu nunca mais vi o 2o Ten R/1 Demo, nem mesmo durante todo o restante do tempo que permaneci no 18o B. I. Mtz (fui considerado desertor em 14 de junho de 1974).
Este foi justamente o oficial encarregado de direcionar os praças aptos a assumirem o comando das metralhadoras prontas para o desfile.
O Tenente “Demo” (apelido do oficial) tinha sido um dos melhores alunos do curso de Comando, Sobrevivência e Guerra na Selva que são ministrados pelo CIGS (Centro de Instrução e Guerra na Selva) de Manaus/AM, e, isto fazia dele uma referencia no nosso adestramento. Sob o comando deste oficial, eu fui um dos alunos bem sucedidos no Curso de Sobrevivência, Guerrilhas, Operações Especiais e também no de embarque e desembarque de Aeronaves em movimento que foi realizado no 5o ETA (Esquadrão de Transporte Aéreo) da Base Aérea de Canoas/RS.
Putz, mas este Curso foi uma loucura mesmo, dizer que pulamos e embarcamos com todos os apetrechos de combate num avião em movimento é coisa de outro mundo, mas para o Exercito, é o momento oportuno de desembarcar tropas de elite num aeroporto ou território eventualmente ocupado por tropas inimigas.
Seguindo na linha do Tenente Demo, o que me levou a este raciocínio foi exatamente à estratégia dele, aparentemente dissimulada e no qual eu tinha conseguido fazer esta leitura. Como todo Combatente Operacional, esta possibilidade de reação sempre foi prevista nos nossos “Manuais de Combate” e, em qualquer lado ideológico. O fato, é que nossa unidade tinha se tornado um entre posto e local seguro para o aprisionamento de supostos subversivos e elementos da resistência contra a Ditadura Militar.
Ocorre que nesta convivência continuada com os presos políticos e pseudo-s subversivos, os praças que periodicamente eram destacados para fazerem a guarda destes, simplesmente passavam a ter acesso a informações pessoais e ideológicas que nasciam a partir de um relacionamento de camaradagem com os presos. Isto talvez tenha sido a razão maior do surgimento de um núcleo marxista dentro de nossa unidade (e noutras também) no qual eu passei a ser observado e posteriormente me tornei integrante.
Para tentar impedir, ou inibir qualquer eventual adesão, o comando da unidade afixava em vários pontos do quartel uma “Carta de Arrependimento” supostamente escrita por um suposto “guerrilheiro arrependido” que conclamava a todos a abandonarem a luta armada, porque não valeria a pena lutar contra o “Brasil” e blá blá blá...
Num desses dias que fiquei de guarda na cadeia onde havia um grupo de presos, conheci um cara que tinha mais ou menos 45 anos, ele tinha os cabelos negros, mas já estavam despontando pequenas mexas branca, era um pouco calvo, e aparentemente sofria de estrabismo, (como eu mesmo tenho e adquiri em decorrência de um acidente no Exercito uns quatro anos após ter desertado).
Ele inicialmente se apresentou como sendo um pedreiro da construção civil. Segundo Miguel (este era o nome usado por ele e, se era verdade ou mentira, pra mim pouco importava). Segundo ele me disse, tinha sido preso por estar fazendo panfletagem em frente a uma fabrica na grande Porto Alegre, e era uma atitude que foi considerada subversiva pelos órgãos da repressão. Miguel havia passado por varias unidades militar pelo período de seis meses em cada uma. Já havia passado pela 1a Cia de Guardas, pelo 3o BPE, pelo QG do III Exercito e, ali estava sem a menor perspectiva de ser libertado ou mesmo com esperanças de sair vivo.
Após adquirir a confiança e o respeito de Miguel, que mais tarde se identificou como simpatizante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionaria) do então líder Capitão Carlos Lamarca, e do qual eu também era simpatizante, ficamos amigos. A partir dali, passamos a trocar idéias, e muitas vezes conversamos sobre a situação no país.
Em certas ocasiões eu comprava cigarros com o meu soldo (a maioria dos presos, a família não localizava, e estes omitiam a existência, até por uma questão de segurança), e lembro bem da marca, “Continental” de maço azul e branco que o Miguel gostava de fumar e pedia pra eu fornecer a ele, obviamente eu fazia isto com extremo cuidado.
Na hora do “Rancho” (almoço, café ou jantar) sempre que podia, eu aproveitava e colocava bastante pão, carne e frutas na bandejão que levava ao Miguel e aos outros presos no qual fizera uma aproximação. Chegamos a fomentar a idéia de facilitar a fuga dos presos ali do quartel, e somente deixamos de lado diante de novos encaminhamentos internos que incluía a tomada da unidade num ato de sublevação.
Loucura? Eu não pensava assim. Nós não tínhamos o direito de vacilar ou de errar, se fossemos pegos, seriamos mortos de imediato. O 18o B.I. Mtz foi o inicio da minha adesão na idéia de combater a Ditadura Militar por dentro, e isso eu pude perceber na vontade de muitos companheiros que contrariados com o que acontecia no país, se manifestavam abertamente para os companheiros que consideravam de confiança.
Com o aumento dos efetivos nos combates no front do Araguaia, e a transferência de praças e graduados, ficou evidente o descontentamento interno sobre o que acontecia. Naqueles dias houve um aumento nos índices de deserções com finalidades políticas.
Essas deserções aconteceram justamente pelo vazamento sutil da possibilidade de tomada das unidades onde servíamos. Mas enquanto estivéssemos ali, nós tínhamos que discutir e inicializar uma política de mudanças que previa todas essas possibilidades. Diante do aumento da repressão contra os grupos organizados da resistência, nós não poderíamos ficar de braços cruzados. Uma das maneiras que consideramos mais adequados para o funcionamento do nosso núcleo marxista seria nos encontros realizados em locais fora da unidade.
Por várias vezes nos reunimos em boates, lanchonetes ou mesmo na casa de algum integrante pra fazermos um churrasco de final de semana, que eram muito comuns no relacionamento entre praças e graduados.
Por força de nossa segurança eles aconteciam com um número reduzido de participantes, Estas situações possivelmente nos colocaria fora de qualquer “suspeita”, e deste jeito à gente aproveitava o momento pra colocar os assuntos em dia diante dos últimos acontecimentos. Até aquele momento era o mínimo que poderíamos fazer embora nossa vontade maior fosse a de partir para o ataque frontal contra as tropas leais ao governo no nosso próprio ninho.
O surgimento destes núcleos deu-se também a partir de uma vertente de remanescentes de um grupo de militares que apoiavam o Capitão Carlos Lamarca, quando de sua passagem pelo 3o BPE (Batalhão de (Policia do Exercito) em Porto Alegre nos anos 60. Aliás, Lamarca deixou um numero infindável de admiradores e seguidores políticos e ideológicos, dentre estes eu me incluo e, mesmo não o tendo conhecido pessoalmente.
Esta simpatia por Lamarca dentro do Exercito ficou evidente pra mim num fato acontecido no ano de 1971. Neste ano eu servia no 22o GAC (Grupo de Artilharia de Campanha) então comandado pelo Ten Cel pára-quedista Dickson Melges Grael (pai dos medalhistas Torben e Lars Grael) que foi um dos pioneiros do pára-quedismo militar no Brasil. Mais tarde, nós descobrimos que o Ten Cel Dickson era um agente e chefe da Regional de fronteiras do SNI (Serviço Nacional de Informações) no Rio Grande do Sul.
Naquela unidade eu incorporei com apenas 16 anos e fui um dos primeiros a freqüentar o curso de pára-quedismo em Uruguaiana. Um dos melhores saltadores na nossa unidade era o então Capitão Victor Pacheco Motta que era o comandante da 2a Bia Can (Bateria de Canhões) onde estava sediado o PELOTAR que eu era integrante.
O Capitão Motta tinha sido instrutor de pára-quedismo nas Brigadas pára-quedista do Rio de Janeiro, na AMAN (Academia Militar de Agulhas Negras), e ainda instrutor dos Cursos de Comando, Sobrevivência e Guerra na Selva do CIGS. O Capitão Motta era também um especialista do Curso de Operações Psicológicas desenvolvido pelo Exercito naquele período.
Mas enfim, ali estavam alguns dos “Falcões” da Doutrina Militar brasileira e da “Casta da Ditadura”. As fronteiras brasileiras eram objetos de vigilância e mapeamento do fluxo de pessoas que por ali transitavam.
O Ten Cel Dickson Melges Grael era o Provável chefe da Operação Condor da região das fronteiras e que vigorava naqueles dias. Lembro-me que no mês de julho de 1971 aconteceu uma reunião gigantesca e de caráter secreto, de altas autoridades militares da mais alta patente do Exercito Brasileiro. Isto no meu entendimento foi em decorrência do prestigio do Ten Cel Dickson Melges Grael junto ao Governo Central.
O Ten Cel Dickson Esteve nos EUA e se especializou em muitos cursos junto ao Exercito Americano, incluindo aí o de pára-quedismo Militar realizado na década de 40/50 e que posteriormente ajudou a implantar no Brasil.
Eu me divertia muito observando o posto de cada um dos integrantes ali presentes, contava às estrelas que cada um ostentava na platina da farda, e se eram gemadas ou não. Enfim, eu realmente fiquei impressionado com o numero de medalhas e condecorações que muitos oficiais ostentavam no peito, e me lembrava do jargão “cabeça erguida, peito pra fora”.
Quando eu era criança, nem pensava em seguir a carreira militar, mas por um destino, fui devolvido aos cuidados do Estado por uma família de empresários que eram fazendeiros e judeu, que me adotaram juntamente com minha irmã de idade 1 ano mais nova. Com eles, ela permaneceu até atingir a maioridade e vir a casar.
Neste ponto, fico eternamente agradecido pelo humanismo despertado por aquela família. Esta situação me levou a optar pelo serviço militar voluntário que foi a forma que encontrei pra me livrar daquele “aprisionamento” forçado no meio de mais de 160 meninos considerado abandonados ou em risco social por uma serie de motivos.
Tudo isto já existia naquele tempo (Lamarca tinha razão) que alias, me lembro muito bem de ter escutado a Copa do Mundo de 1966 num radinho de pilhas que pertencia a um menino daquele Educandário Rural.
Outra lembrança foi a de ter assistido o homem descendo na lua em 1969. Esta façanha eu assisti sentado num chão gelado ao lado de vários meninos. Era uma televisão grande de madeira ficava no alto e tinha a imagem bastante tremida e chamuscada, o volume era muito baixo e qualquer um que abrisse o bico, levava um safanão na orelha.
Mas voltando ao encontro da ECEME, o menor posto entre os participantes era o de Capitão, que na maioria das vezes eram ordenanças dos Oficiais Superiores da patente de Coronel e Oficiais Generais. Mas também havia muitos Tenentes Coronéis e Majores presentes nesta Cúpula do Exercito representados pela Escola de Comando e Estado Maior do Exercito (ECEME). Durante este período eu fiquei de prontidão na unidade.
Participei de vários PC Trans (Postos de Controle de Transito) com barreiras fortemente armadas e com barricadas compostas por peças de metralhadoras e sacos de areias em vários pontos estratégicos da cidade de Uruguaiana, incluindo também outras regiões da fronteira oeste do Rio Grande do Sul.
Cheguei a participar na perseguição de um veiculo pequeno que encurralamos junto a uma pequena usina da CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica) que ficava a direita da ponte Internacional e da aduana brasileira. O Veiculo tinha tentado burlar a barreia e saiu em disparada (o motivo era apenas a documentação irregular) Os sujeitos foram presos e soltos após o termino da reunião de Cúpula Militar.
No campo de futebol existente dentro do 22o GAC pousou cerca de oito helicópteros e eu fui um dos elementos do PELOTAR (Pelotão Aerotransportado) que atualmente são conhecidos como PELOPES (Pelotão de Operações Especiais) a fazer a segurança daquelas aeronaves até então top de linha nas forças Armadas.
Colocamos uma rede verde de camuflagem por cima dos helicópteros que ali permaneceram por três dias ininterruptos. Ficamos de olhos abertos por 24 horas e com a adrenalina no ápice. Neste período é que eu pude perceber a grandiosidade daquele encontro que fora comandado pelo mais alto escalão do Exercito e da “Cúpula Dirigente do Regime Militar”.
Mas retornando ao eixo principal, no mês de agosto daquele ano havia rumores no quartel sobre uma perseguição ao Capitão Carlos Lamarca que se encontrava possivelmente no norte/nordeste do país.
Alguns comentários davam conta de que Lamarca havia rompido vários cercos programados para pega-lo e, esta era apenas algumas suposições emitidas por oficiais superiores.
Mas eu também me lembro claramente das torcidas formados por praças, graduados e jovens oficiais que eram a favor, e daquelas torcidas indisfarçáveis, mas cautelosas que eram contrários a prisão do nosso nobre líder da VPR.
Já na metade do mês de setembro, houve uma pausa nos comentários a respeito deste assunto. Mas eis que no dia 18 de setembro de 1971 fomos informados oficialmente da morte do Capitão Carlos Lamarca e de outros (que foram emboscados e assassinados brutalmente no Estado da Bahia). Esta noticia provocou um grande choque no quartel.
Lamarca era um exímio atirador, e tinha sido Campeão Sul Americano ou brasileiro de tiro ao alvo. Lembro-me que naquele dia circulou uma revista de mão em mão mostrando o nosso líder ensinando bancários a atirarem. Aquelas fotos foram guardadas na minha mente como relíquia de boas lembranças.
Pensar que o Exercito Brasileiro comemorou a morte do Capitão Carlos Lamarca? Ledo engano, o mal estar foi geral, nossa unidade silenciou por completo durante vários dias em homenagem aquele homem que tinha o ideal de transformar o Brasil num país mais justo, humanista e igualitário, ou seja, numa nação verdadeiramente Independente e Socialista.
De origem pobre e humilde, o carioca Capitão Carlos Lamarca sempre lutou como um verdadeiro bravo e pagou com a própria vida a incompreensão daqueles que comandavam o país com mãos de ferro, a Ditadura Militar.
Se por um lado o comando do Exercito considerava Lamarca um traidor, por outro, dezenas de jovens Oficiais, Sargentos e Praças de todas as armas o veneravam, e nunca conseguiram esconder esta afeição por aquele que era um exemplo de determinação e ideal a ser seguido.
Isto deixava a Cúpula Militar em polvorosa, e que mais tarde culminou numa perseguição interna nas Forças Armadas e sem precedentes na historia política do Brasil.
Como relatei, e assim diziam os antigos:
- Isto eu vivi, e presenciei com estes olhos que a terra um dia há comer!
OUSAR LUTAR, OUSAR VENCER!
Carlos Alberto Bento da Silva
Ex militante do PCB e do PSTU
Texto original publicado no dia 7 de Setembro de 2007 em outro blog.
Desertei em junho de 1974. A partir daí passei a levar uma vida de fugas.
Eu estava sendo cassado pelos integrantes de minha unidade. Em 1975 fugi para a República Argentina. Viver na argentina parecia não ter problemas até aquele ano embora às coisas também não estivessem tão calmas assim, e eu sentia que deveria estar no Brasil.
Com o meu retorno ao Brasil, comecei a perambular por vários estados.
Em 1976 iniciei fazendo artesanato como forma de sobrevivência. Eu havia conhecido alguns artesãos em Porto Alegre logo após ter trabalhado por curto espaço de tempo como cobrador de ônibus. Coincidentemente eu aprendi um tipo de artesanato com um casal de argentinos, e a seguir com outros artesãos brasileiros. Em março de 1977 eu me casei em Porto Alegre depois de já estar um ano vivendo com minha companheira, porém, a nossa vida não poderia ser levada ali.
Eu havia sido informado por alguns amigos, (inclusive do exercito) que estava sendo procurado pelos S2 (2ª Seção de Inteligência – Informações e Contra Informações) da unidade militar que servira. Imediatamente eu passei a percorrer o país na tentativa de me manter em liberdade frente ao crime de deserção com conotação política (nunca concordei com a presença de presos civis no quartel do 18º BIM), também já estava sendo monitorado por minhas posições políticas já há algum tempo, por isso, estava sendo caçado.
Tomado a decisão, imediatamente me dirigi à região sudeste do país. Todo cuidado era pouco, e minha companheira não poderia jamais saber os reais motivos. Eu levava uma vida de dupla personalidade motivada pelas circunstâncias.
Em São Paulo me juntei a um grupo de ativistas que periodicamente participavam das manifestações que ocorriam no centro da capital.
Lembro-me como se fosse hoje, estava morando ali na Praça Princesa Isabel (Campos Elíseos) e soube de uma investida das forças de segurança em uma célula que realizava uma reunião dos dirigentes do PCdoB ali no bairro da Lapa. Nesta ação foram presos vários dirigentes daquele partido que estava na resistência armada contra o regime militar.
No ano de 1977 eu entrei para a Feira de Artes e Artesanato da Praça da República. Naquele mesmo ano nasce o meu primeiro filho, no ano seguinte nasce uma menina.
O meu casamento passou a se tornar complicado. Eu precisava ocultar da esposa a minha condição de procurado. Consegui fazer durante o período que vivemos, até que no final de 1979 me separei. Eu havia conhecido ela no ano de 1976 na cidade de Passo Fundo/RS.
Durante nossa convivência eu saia periodicamente para um suposto trabalho, na verdade, participava de atividades políticas, muitas delas na área central da cidade de São Paulo. Naquele ano cheguei a ser detido por não portar documentos. Tentaram me incluir num artigo de lei criado pela ditadura como “vadiagem” Era obvio que eu não deveria portar documentos, estava sendo procurado.
Ninguém poderia imaginar que um meio índio, cabeludo e barbudo do tipo hippie, pudesse ser desertor de uma unidade operacional. Seria impossível imaginar que aquele sujeito vestido como tal pudesse ser um ex-militar procurado.
Alguns fatores fundamentavam a minha prisão: Meu testemunho referente aos presos políticos que existiam na unidade, minha militância clandestina dentro do próprio Exercito e os treinamentos com as estratégias de lutas contraguerrilhas que eu dominava, juntamente com as informações das ações que ocorriam no front do Araguaia.
Periodicamente recebíamos essas informações, o Tenente Siqueira Oficial R/1 que era o comandante de meu pelotão na 2ª Cia Op. nos passava quase que detalhadamente as ações ali ocorridas. Comentava que o Exercito já havia feito “contatos” (combates), e que vários estavam lá há algum tempo, chegando de todas as formas possíveis.
A tropa estava fazendo incursões descaracterizadas, na verdade se instalando como se civis fossem. Alguns como representantes comerciais, trabalhadores de mineradoras ou comerciantes mesmo. Essas informações privilegiadas nas mãos de desertores poderiam levar as ações ao fracasso ou até mesmo dificultá-las.
O exercito não abriria mão de prender ou de matar qualquer desertor nesta condição, ou que debandasse para o lado da resistência. Assim fizeram com vários militantes de esquerda. O mais conhecido foi o Capitão Carlos Lamarca do qual havíamos nos tornado seguidores.
Não era por menos, que naquele período, as força da resistência contra o regime militar estavam sofrendo uma avassaladora derrota. Na verdade estava ocorrendo à prisão, a tortura e o assassinato em massa dos supostos subversivos que caiam em mãos do aparelho repressor. Aqueles que não morriam em combate eram levados para os DOI-CODI e para as repartições do DOPS espalhadas pelo país.
Os DOI-CODI eram conhecidos como os porões da ditadura, eram na verdade, departamentos policiais de inteligência, especializados em torturas, e tinham suas estruturas montadas dentro das próprias instalações militares existentes.
Os militares com o apoio das Policias Civis dos estados, da Policia Federal, do DOPS, das Polícias Militares, da Marinha e da Aeronáutica estavam levando vantagem nos enfrentamentos. Essa doutrina estratégica de combate previa a integração de todas as forças militares e de segurança. Os resistentes eram aniquilados através de execuções sumárias e torturas, principalmente aqueles que por infelicidade caiam em suas mãos. Houve muitos casos de execuções forjadas como resistência a prisão.
As ações no Araguaia eram prioridades para as forças armadas que estavam treinando centenas de soldados para o teatro de operações.
A repressão era contínua em todos os níveis da sociedade.
Nas assembléias legislativas, nas Câmaras de Vereadores e nas repartições públicas, havia uma verdadeira caça as bruxas que tinha iniciado a partir do golpe, mas continuava a todo o vapor. No setor privado, alguns empresários até entregavam seus funcionários em troca de facilidades junto ao regime militar.
Os sindicatos existentes atendiam fielmente os pleitos patronais. Não havia resistência declarada no meio sindical. A igreja católica comungava abertamente com tudo o que os militares executavam, porém, sempre existem exceções, neste caso, a atuação do Cardeal Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns da Diocese de São Paulo, e um pequeno setor da igreja foi uma dessas.
As arapongas dissimulados de funcionários públicos eram colocadas em cargos de chefia a serviço do Regime Militar. Prefeitos foram nomeados naquilo que chamavam de Áreas de Segurança Nacional, como exemplo, a cidade de Santos, Foz do Iguaçu, Florianópolis e tantas outras.
O Regime Militar criou também os chamados Senadores Biônicos (escolhido a dedo pelo Governo Militar. Os Governadores eram nomeados. Enfim, era verdadeiramente um regime de exceção que vigorava no Brasil.
O Delegado Sergio Paranhos Fleury era um nome muito forte do aparelho repressor em São Paulo. Comandava pessoalmente várias operações sujas, mais conhecidas como as de extermínios, incluindo ai a dos presos políticos.
No meio político ouvia-se dizer que alguns militantes estavam entregando os seus companheiros mediante tortura. Alguns comentavam da existência de agentes duplos infiltrados nas entidades de classe toleradas pelo regime e nos serviços públicos.
Existem ainda nos dias de hoje uma parcela ínfima de políticos que cresceram política e eleitoralmente a partir daquele período. Hoje, ainda gozam das benesses do poder com apoio dos seus amigos da falsa esquerda de sempre. Que, aliás, logo após a abertura se fracionou em partidos políticos juntamente com os chamados padres progressistas da igreja católica.
Esses camaleões do falso socialismo tornaram-se descaradamente os apoiadores de hoje daqueles que no passado foram seus aliados ocultos.
Eis aí a dura tarefa de se combater de frente aqueles que estão beijando a mão dos algozes.
Em 1978 iniciou-se uma seqüência de manifestações em São Paulo e no ABC Paulista.
Os metalúrgicos da região faziam assembléias que eram proibidas e fortemente reprimidas pelo aparato repressor. Os governos paulistas subseqüentes mantinham uma cumplicidade com o governo central que intrinsecamente lhes apoiavam. Naquele período do bi-partidarismo, ficar no anonimato era a garantia mais plausível para os militantes mais ativos.
Durante as manifestações daquele ano, a repressão foi estarrecedora. Eu estava no interior da Praça da República vendendo artesanato quando escutei o barulho de sirenes e de tiros bem próximas dali. Imediatamente me retirei do local. Guardei o meu material e fui em direção ao epicentro dos enfrentamentos.
Juntei-me com um grupo de populares que resistia jogando pedras e outros objetos para cima da Policia Militar. Viaturas da ROTA (Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar) subiam na calçada e partiam para cima dos pedestres. Soldados a pé empunhavam cassetetes e batiam em qualquer um que estivesse em seu caminho.
As ruas sete de Abril, Barão de Paranapiacaba, a Rua Barão de Itapetininga, a Praça Rui Ramos, Praça Clóvis, o Viaduto do Chá, as Rua Direita, Rua 15 de Novembro, Rua Conselheiro Nébias, a Praça da Sé entre outras, estavam todas ocupadas pela policia que prendia aos montes os resistentes.
Consegui juntamente com alguns manifestantes, me abrigar no interior da estação São Bento do metrô, mas a polícia não estava nem aí, jogaram uma dezena de granadas de Gás Lacrimogêneas para dentro. Foi aí que tomei a iniciativa de devolver os artefatos. Lembrei-me de que com um lenço (de preferência umedecido) no rosto e com este deitado no chão, minha chance de não ser contaminado ou atingido pelo gás seria maior. Logo em seguida um grupo de jovens começou a fazer o mesmo. Cada vez que a policia jogava uma granada nós devolvíamos para fora.
Repentinamente um grupo de policiais mascarados entrou ali dentro e começou a prender algumas pessoas. Por sorte eu consegui escapar naquilo que se chama “nas barbas de netuno’, ou melhor, passei normalmente no meio deles como se nada tivesse acontecido.
Saindo para o centro do Largo São Bento é que pude ver um grande número de viaturas e o aparato ali prontificado, mesmo assim consegui ir até a Praça da Sé onde os enfrentamentos continuavam.
Novamente me vi no meio do conflito. Não sentia medo algum, apenas uma preocupação de que pudesse ser preso e posteriormente identificado. Os enfrentamentos duraram cerca de uma hora e meia. A princípio de forma concentrada e a seguir já estava acontecendo mais disperso.
O Centro velho de São Paulo (o novo é a região da Paulista e Jardins) pelo que tinha visto estava todo ocupado pela policia militar e pelo exercito que procurava nunca aparecer publicamente.
Eu retornei para a Praça da República. A feirinha que acontecia diariamente de maneira informal tinha acabado naquele dia. Eu retornei pra casa como se nada tivesse acontecido. Morava na Rua Jandaia entre a Avenida Brigadeiro Luiz Antonio e a Avenida 23 de Maio Proximidades do bairro Bexiga. Do outro lado ficava o Bairro Japonês da Liberdade.
Naquele ano ainda aconteceram outras tantas manifestações e escaramuças nas grandes cidades. Os trabalhadores de varias categorias insistiam em fazer greves e a repressão continuava forte pra cima desses e da população.
No mesmo ano eu consegui uma licença mediante teste na Feira de Artes e Artesanato na cidade de Embu das Artes. Um ano antes tinha sido na Feira da Praça da República. Minha permanência ali no Embu durou pouco mais de dois meses. Estava trabalhando com as mercadorias expostas no chão, havia colocado um cobertor e montado uma caminha improvisada para o meu filho.
Eram 13 horas da tarde de um domingo movimentado quando resolvi ir à padaria mais próxima comprar alguma coisa para comer. Feito isso, no meu retorno fiquei surpreso com as reclamações de minha companheira e de meu compadre Pedro de Arruda (artesão). Eles me disseram que um sujeito havia passado com os pés em cima do cobertor e quando chamado a atenção revidou com palavras de baixo calão.
Minha companheira tinha dito a ele que falasse para o seu marido e ele disse: Daqui a pouco eu volto e quebro a cara dele. Ele nem sabia quem eu era, se era gordo, magro, alto, baixo, fraco ou forte, mas sinceramente, isso pouco importaria para o sujeito que estava um pouco alterado. Não demorou mais que dez minutos quando fui surpreendido com um palavrão.
O cara que me chamou para a “porrada” gesticulava muito. Bem, eu não me intimidei, estava calmo, mas atento. O sujeito era um cara com fisionomia de nordestino (soube mais tarde que era pernambucano), era bastante forte e com a altura aproximada de 1,80 metros.
Assim que o cara começou a tirar a camisa eu dei um soco bem forte no olho dele, o sujeitinho caiu no cão e rapidamente se levantou, era ágil mesmo, mas eu não deixei por menos e segui na seqüência batendo umas duas vezes no mesmo olho. Não deu outra, o cara cambaleou, e até pensei que iria desmaiar.
Neste ínterim, outro sujeito mais baixo estava levando uma surra de meu compadre que para azar deste, ele era praticante de capoeira e gostava de uma briga de rua. Os dois sujeitos que estávamos brigando saíram em disparada.
Nesse momento apareceu um artesão que há anos trabalhava ali no Embu das Artes e me disse: Carlão (meu apelido entre os artesãos) caia fora que o cara foi buscar um revolver, ele é violento e trabalha ali na padaria onde você foi comprar os lanches. Ele vai pegar vocês.
Vá embora agora mesmo para o teu bem insistiu o meu amigo. Eu escutei atentamente o artesão que conhecia há algum tempo e recolhi o meu material, meu compadre fez o mesmo. Pegamos um taxi e nos dirigimos até São Paulo.
No outro final de semana, para ser exato no outro sábado, ficamos sabendo que o sujeito andava armado lá no Embu nos procurando. Acho que escapamos por pouco. Nunca mais coloquei os pés ali no Embu das Artes.
... As manifestações pela abertura democrática se intensificavam no Brasil inteiro.
Em Santa Catarina ocorreu à conhecida novembrada, que, aliás, foi reproduzido em um filme dirigido pelo ex-jornalista Celso Martins (conheci-o como assessor de imprensa da OAB de SC durante um encontro com a comissão de Direitos humanos da Ordem que fora agendada por ele).
Anos mais tarde, Celso Martins tornou-se um grande cineasta. Em 1979 os militares aprovaram a lei de anistia geral e irrestrita, sendo essa a bandeira da sociedade civil e do MDB.
Neste período eu já havia estado em Florianópolis como artesão, fiquei um curto tempo morando na Lagoa do Peri.
As campanhas foram intensas. No meu caso, não saberia dizer ao certo se estava anistiado. Como desertei em 1974, obviamente segundo o Regimento Geral do Exercito (RGE), o crime militar de deserção seria prescrito somente dez anos após. Mas havia outro entendimento. Como eu fora um militante clandestino, estaria beneficiado por esta lei? Eu preferi não arriscar.
Após o retorno de vários personagens da política que haviam saído do Brasil para não serem mortos, entre esses, Leonel Brizola, Fernando Henrique, e outras dezenas, incluindo ai artistas, professores, militantes e cidadãos comuns. O Brasil inteiro passa a exigir eleições diretas, sendo que, no Estado de São Paulo, as manifestações ganham um impulso espetacular.
O Estado de São Paulo era o maior centro reivindicatório e de resistência contra a manutenção do Regime Militar, e eu estava presente no vale do Anhangabaú próximo ao Correios, onde foi realizado um grande comício em favor das Diretas já. No mesmo período ocorreram outras grandes concentrações também na Praça da Sé e eu também participei.
Às vezes eu fico boquiaberto de ver personalidades políticas, antes inexpressivas, auferindo pra si o feito das diretas já.
Ora, o povo compareceu ali aos milhares naqueles comícios porque já não agüentava mais. A repressão e a supressão dos direitos individuais, da liberdade de opinião, de expressão, e da falta de democracia que culminasse com a livre escolha dos mandatários era o porta bandeiras do povo. Éramos todos a favor de Eleições Diretas já.
Em 1982 ocorreram eleições para governador e para o senado, para prefeitos, vereadores e deputados. As eleições ocorriam simultaneamente em todos os níveis.
No Congresso Nacional a emenda constitucional “Dante de Oliveira” que defendia eleições diretas para presidente da Republica foi fragorosamente derrotada.
No ano de 1983 as manifestações continuaram em São Paulo. Naquele ano ocorreram dois grandes quebra-quebras no centro da capital paulistana.
Num grupo de pessoas saiamos pelas mesmas ruas do centro velho (de outras manifestações) quebrando lojas, vitrine de bancos, e do comercio em geral. Como já era de praxe a policia militar com a ROTA e a Cavalaria, cercou o centro da cidade, mas foram derrotadas nos primeiros 45 minutos da revolta.
O Povo saqueava as lojas, quebrava tudo que via pela frente. Na rua direita o comercio tentou se proteger fechando as portas, mas não deu tempo de nada. O povo invadiu todo o comercio central. A polícia cercou a Praça da Sé tentando encurralar os manifestantes, mas não conseguiu.
Confesso que não fiquei indiferente. Não desperdicei aquela oportunidade. Com um grupo de estudantes quebramos várias vitrines de Bancos e financeiras existentes ali na Rua 15 de Novembro e nas imediações do largo do Café. Não demorou muito tempo e a Rota se fez presente. Tentei correr para o interior de um edifício comercial e fui impedido. Levei umas cacetadas nas costas e nas paletas e sai titubeando, gemendo de dores, mas não me deixei ser preso.
Os policiais batiam em qualquer parte do corpo. Houve um breve momento em que encurralaram o nosso grupo. Nós reagimos jogando pedras e paus na direção deles. Um grupo de estudantes vindos do Largo São Francisco e de operários nos deu uma boa quantidade de bolinhas de gude e de miguelitos (uma espécie de cravos de ferro com três pontas, que jogados no chão sempre cai uma para cima), produzidos em série nas fabricas do ABC paulista. Vinham bombas de gás lacrimogêneas de todos os lados.
Quase fui preso, por um instante pensei que isso iria ocorrer. Se isso realmente acontecesse, talvez eu fosse identificado e processado sem direito a liberdade. Tinha no meu histórico clandestino o crime de deserção e estávamos em plena ditadura militar e apesar da famigerada anistia estar em vigor.
No ano de 1980 eu já estava separado do primeiro relacionamento.
Numa das minhas idas para o sul do Brasil eu conheci uma menina de 16 anos em Porto Alegre. Na mesma semana eu a trouxe para São Paulo. Tivemos dois filhos, novamente um menino e uma menina. Já estava com quatro filhos, sendo dois de cada casamento. No ano de 1981 durante um breve período de três meses eu fiquei em Porto Alegre. Me esguiava sempre que podia, aliás, também me sentia até meio seguro com o jeito hippie de me vestir e viver.
Durante um dos dias que estava em Porto alegre, resolvi entrar numa lanchonete que existia na Rua da Ladeira, na parte de cima quase próxima da Rua dos Andradas (conhecida como Rua da Praia), ao entrar e pedir um cafezinho (minha bebida preferida) eu fui logo reconhecido pelo ex-Cabo Dias.
O Cabo Dias tinha sido o nosso armeiro na 2ª Cia de Operações Especiais do 18º Batalhão de Infantaria Motorizado, unidade militar do qual eu havia servido e desertado no ano de 1974. O cabo Dias me disse apreensivo e ao pé do ouvido: Carlos Alberto, suma de Porto Alegre, os caras ainda querem te pegar, se te acharem vão te matar. Eu não pensei duas vezes. A companheira que vivia comigo na época desconhecia o meu passado político e de ex-militar. Assim sendo, eu tratei logo de arranjar um motivo e retornamos para São Paulo.
Por tudo que eu tinha passado, nunca envolvi minhas companheiras nas minhas ações políticas ou as deixei participar de assuntos passados que no fundo nãos lhes diziam respeito. Obviamente sempre tive a responsabilidade de não colocá-las em risco, assim eu também agi com minha irmã. Eu posso contar nos dedos às vezes que a encontrei. Ela me disse certa vez que tinha me visto vendendo artesanato na Rua Dr. Flores esquina com a Rua dos Andradas.
Lembro que depois do primeiro encontro com minha irmã em 1971 quando servia no 22º GAC, eu voltei a encontrá-la somente em 1973 já servindo no 18º BIM. Em 1976 ela me encontrou vendendo artesanato na Rua da Praia em Porto alegre. As outras vezes foram em 1980 numa rápida vinda que fiz a Porto Alegre e a ultima em 1989 quanto estive na companhia de minha filha Michelle, (do segundo casamento).
Eu não tenho magoas de minha irmã, mas confesso, eu sou um sujeito muito desajeitado, mas também sou sistemático e decidido. Não finja diante de mim que eu consigo pegar no pulo. Eu entrei uma única vez na casa de minha irmã. Não tomei nem mesmo um cafezinho. Da ultima vez que a encontrei, eu fui recebido no portão por ela e, não fiz questão de entrar, na verdade ela não tinha me convidado.
Eu me lembro até hoje, que após o nosso primeiro encontro, eu retornei alguns anos depois, procurando-a no endereço antigo ali na Avenida Independência ao lado daquele teatro no centro de Porto alegre, infelizmente não a encontrei. Logo que me dei conta de que havia perdido-a de vista, eu fiquei novamente desesperado. Iniciei uma busca pela lista telefônica e pra minha surpresa, fui bem sucedido. O Telefone estava em nome de seu marido, meu cunhado. Imediatamente fui ao seu encontro.
Às vezes eu fico pensando, as tecnologias da informação e da comunicação têm ajudado milhares de famílias a se encontrarem. Um exemplo disso está no Orkut, na internet e em outros meios como a própria televisão que disponibiliza programas específicos de audiências. Eu já tentei algumas vezes procurar os meus pais que nunca conheci, mas, até o momento, ainda não tive sucesso.
Já faz uns cinco anos que eu venho mantendo contato com ela e com suas filhas (minhas sobrinhas), tanto no Orkut, quanto através do MSN. Periodicamente conversamos. Eu sempre estou informado da situação deles que vivem no Rio Grande Do Sul. De verdade mesmo, dos cinco filhos que ela tem, eu conheci somente duas sobrinhas e um sobrinho, as outras não tinham nascidas ainda quando a visitei em 1989. O mesmo ocorre com ela em relação aos meus filhos e enteados. Eis ai a oportunidade que temos por conta das redes sociais na internet.
Sinceramente, não fico triste por ter esse relacionamento quase gelado com minha única irmã que conheço, aliás, minha única parenta direta. Na verdade, eu mesmo procurei isto quando decidi não me aproximar dela por conta da minha condição política de ter desertado, e estar sendo procurado pelo exercito. Esta foi à forma que encontrei para poder preservá-la de eventuais problemas com a ditadura militar.
O maior exemplo de minha atitude eu encontrei lá no 18º BIM. O companheiro que conheci nas prisões do quartel enquanto eu servia, fazia o mesmo com sua família.
Nunca a visitou e nunca recebeu sua visita. Miguel que era simpatizante da VPR amargou vários anos de prisão apenas por estar fazendo panfletagens em frente de uma fabrica na grande Porto Alegre. Ele havia passado por várias unidades militares sem o conhecimento da justiça. Miguel dizia que era melhor morrer só do que ser egoísta e levar a família junto apenas por burrice.
O aparelho repressor do regime militar costumava investigar as famílias inteiras dos integrantes das suas listas de procurados, e não deixava por menos a dos prisioneiros políticos. Não é nada fácil você ter de abrir mão de um relacionamento familiar. Não é fácil você ter de se esquivar ou ignorar propositadamente sua família para poder preservá-la, sem que esta saiba o porquê dessa atitude. ´
Nunca levei sequer (sic) uma única palavra com minha irmã sobre minha vida privada, de foro intimo ou, mesmo de política. Penso que minha irmã me veja como uma pessoa qualquer. Jamais poderia imaginar o sofrimento que passei na luta pela preservação de minha vida. Diferente de outros militantes que se exilaram. Embora eu tenha tentado viver fora do Brasil, eu permaneci no país lutando internamente dentro das possibilidades que encontrava.
Também fiquei anos sem poder tirar uma carteira de trabalho profissional. Na verdade, durante o período que dei baixa do 22º GAC e re-inclui no 18º BIM em 1972, eu consegui tirar. Ocorre que logo após minha deserção eu fugi para a República Argentina, e para evitar ser identificado eu queimei todos os meus documentos e assumi o nome de Carlos Alfredo da Silva.
Vale lembrar que o meu nome tinha sido ilegalmente trocado para Carlos Alberto Bento da Silva. Tenho orgulho de ter minha vida salva inúmeras vezes com o meu nome verdadeiro de Carlos Alfredo.
Lembro-me como se fosse hoje. Eu havia embarcado num trem de santos para Itaianhém no litoral sul do Estado de São Paulo, era o ano de 1976, recentemente eu tinha vindo do Sul do país.
Estava dentro do trem e ali eu já tinha iniciado a fazer artesanato, meu visual era o de um verdadeiro hippie. Meu cabelo estava caído até os ombros, eu já despontava com os pequenos sinais de um estrabismo ocorrido por conta do acidente que sofri em 1973 quando estava no 18º BIM.
Naquela viagem eu carregava uma bolsa de couro confeccionada por mim mesmo, tinha aprendido com outros hippies a produzir artigos de couro, entre estes mocacins, bolsas, carteiras, sandálias, portas-cheque, porta moedas, pufs e outros artigos.
Enfim, eu já havia adquirido os meios quase profissionais para poder sobreviver na informalidade. Mas, o material que eu carregava naquele momento, eram apenas alguns pares de mocacins, meio litro de ácido sulfúrico, vários pedaços de chapas de latão de três ou quatro espessuras, uma latinha contendo Neutrol (tinta betuminosa a base de asfalto), um tesourão, um jogo de três alicates para confeccionar bijuterias, miçangas, pedrinhas de vidros, canutilhos, uns três quilos de arames de latão e outros acessórios.
O trem balançava de vez em quando, eu não me incomodava, cortava a chapa e recortava. Meu objetivo era ir adiantando os trabalhos enquanto não chegava ao destino. O chefe do trem vinha caminhando acompanhado de um policial militar, eles pararam, me olharam e seguiram caminhando de vagão em vagão. Cerca de cinco minutos após, retornaram, e o policial pediu meus documentos, eu disse que os havia perdido. Bem ele disse, o Sr terá de me acompanhar na próxima estação.
Estávamos chegando a Pedro de Toledo e o PM me ordenou que descesse ali mesmo.
Eu desci e falei pra ele: Eu não tenho dinheiro para pegar o próximo trem e muito menos para comer, por isso gostaria de ser liberado rapidamente para não perder este. Ele me disse educadamente (sic) não se preocupe, nós o colocamos no próximo trem. A seguir “convidou-me” para ir até a delegacia que ele queria fazer algumas averiguações. Lá chegando o tom da conversa mudou. Ele gritou comigo ordenando: tire a camisa seu vagabundo, tire a calça, fique somente de cuecas.
Abra a bolsa e jogue tudo no chão, rápido dizia enquanto me dava tapas na cabeça. Eu olhei pra cara dele dentro dos olhos e disse: Você não pode me agredir, não te fiz nada e você não comprovou nada. Chame-me de Senhor seu vagabundo, e emendou: Quem manda aqui é eu e cale esta boca. Você vai ficar preso pelo tempo que eu quiser.
A seguir me mandou colocar as roupas, logo após ter feito uma revista minuciosa nelas, me algemou e colocou-me numa cela com outros dois presos.
Os caras estavam ali há uns três meses, um por brigas e o outro por pequenos furtos. O que havia brigado saia da sela periodicamente para fazer a limpeza da delegacia. Havia sempre um PM junto dele acompanhado o trabalho. Dois dias após, me colocaram sozinho numa cela.
Todos os dias o Cabo entrava na cela e periodicamente me fazia perguntas, na maioria das vezes de caráter político. Na verdade eu me deixei levar por questionamentos que fazia a ele sobre meus direitos. Isto despertou uma linha de entendimento por parte dos policiais.
Fiquei revoltado e não aceitava estar preso por nada, ao menos eles desconheciam meu passado ou minha vida. Em dado momento o cabo chamou o sargento que era o delegado da cidade, na verdade ele passava esta imagem.
O sargento me tirou da cela, levou-me para uma sala e me fazia várias pergunta repetidas: Qual é o teu nome mesmo: Eu sempre dizia, Carlos Alfredo ele retrucava, qual é o teu nome mesmo? E assim ele ia me testando para pegar alguma mentira, era completamente desconfiado.
Eu fui um desconhecido que apareceu ali, e naquele clima da ditadura ele me usou como uma espécie de cobaia para ter o que fazer. No mesmo dia resolveram me dar umas bordoadas por não gostarem do jeito fechado de me comportar. Não lhes respondia por duas vezes o que me perguntassem. Poderiam me matar se quisessem. Aprendi durante a minha passagem pelo exercito a resistir a qualquer tipo de tortura.
Eu saberia dissimular, saberia mentir e saberia como não entregar os meus companheiros. Mas eu já não era um militar fiel aos princípios do exercito. Era um militante marxista. Eu havia me convertido ao marxismo-leninismo desde os tempos do 22º GAC, dentro das próprias fileiras do exercito. Na verdade, ali naquele momento eu apenas exercitava aquilo que tinha aprendido nos treinamentos militares.
Certamente eu morreria, e eles saberiam apenas o meu primeiro nome. Ficaram extremamente desorientados com aquele tipo hippies que só dizia ser Carlos Alfredo.
Reviraram e analisaram várias vezes os meus pertences, só encontravam bijuterias feitas com miçangas e latões. Talvez tivessem me considerado um débil mental, um tipo de andarilho que não poderia lhes fazer mal algum, mas insistiam na sua saga malvada.
O sargento e o cabo me colocaram na mesma sala de antes e resolveram me dar alguns socos nas costas. O cabo dizia: vou te matar na chibata seu vagabundo. Pegou um pedaço de pau revestido com uma mangueira de plástico e de vez em quando batia nas minhas costas, primeiramente de leve como se estivesse me testando, logo começou a bater forte. Eu olhei para os lados e vi que estávamos a sós. Não pensei duas vezes, dei um soco debaixo para cima no queixo do cabo que caiu, mas a seguir se levantou gritando: Seu filho da puta, eu vou te matar desgraçado.
O sargento e mais uns três soldados entraram na sala e começaram a me bater. Depois de uns dois minutos levando bordoadas nas costas, o sargento ordenou que parassem. Minutos depois fui levado novamente para a cela onde estava preso.
Aquele dia foi terrível pra mim, passei com fortes dores pelo corpo, sentia uma dor de cabeça terrível. Parecia que iria desmaiar.
Naquele mesmo dia não me deram comida. Na verdade, desde que tinha sido preso de graça (sic), eu comia somente uma vez por dia. Era apenas a metade de uma marmita que era dividida entre os presos. Água? Eu pensava duas vezes antes de beber quando me traziam. Desconfiava que pudessem cuspir dentro, ou colocassem qualquer outra porcaria.
Durante o período que estive preso, eu bebi água somente em três ocasiões. Em cada uma delas, eu bebia como se fosse o ultimo dia da minha vida. Na cela não havia torneira nem chuveiro, apenas um buraco naquele chão fedorento. Cobertores e colchões? Nem pensar, eu dormia agachado e encolhido no chão, me cobria com as pontas da camisa que vestia.
Não vou esquecer jamais das torturas físicas e psicológicas pelo qual eu havia passado. Vale ressaltar que eu não estava ali como um preso político, mas aquelas ações policiais, se caracterizavam como um modus operandi das forças policiais que defendiam e respiravam o sistema ditatorial que o país vivia.
Aquele quadrilátero entre Santos-Peruíbe, Eldorado Paulista-Miracatu, havia se transformado numa região propícia para a guerrilha rural. Este fato ficou registrado com a descoberta dos campos de treinamentos da VPR no início dos anos 70.
Houve momentos que cheguei a pensar que tinham descoberto quem eu era de fato, que tinham descoberto o nome pelo qual eu estava sendo procurado pelo exercito.
Cheguei a pensar que estavam apenas aguardando que elementos do DOI-CODI (Departamento de Operações Interna e Centros de Operações e de Defesa Interna) que existiam em várias unidades militares, ou, mesmo do DOPS, ali chegassem. Mas, eu estava enganado.
Aquele grupo de trogloditas que comandavam a segurança pública da cidade de Pedro de Toledo/SP (localizada as margens da atual Rodovia Manoel da Nóbrega) parecia que estavam apenas brincando de polícia. Dois dias após a seção de torturas pelo qual eu havia passado, o Sargento resolveu me mandar embora. Chegou à cela e disse: Carlos Alfredo, nós não encontramos nada contra você, pode ir embora.
Eu senti ali uma luz de liberdade, vi no rosto daquele policial uma leve expressão de arrependimento. Ele falou de maneira educada como no dia que me abordou no trem. Parecia ter saído de um transe espiritual. Perguntei a ele: Sargento, onde estão os meus pertences? Ele respondeu: Eles vão ficar aqui com os demais presos. Um deles já está usando tuas ferramentas sob a custódia de um policial.
Você esta fazendo uma doação voluntaria, não é verdade? Sim eu disse a ele (tinha sido confiscado), dirigindo-me para a saída da delegacia. Alto gritou o Sargento, vamos escoltá-lo até a saída da cidade, isto é praxe quando prendemos forasteiros na cidade. Você não é bem vindo aqui. Sabemos como vivem os hippies, sexo, drogas e rock in roll, pode ir.
A seguir eu saio andando na direção que ele apontou. Atrás de mim estava uma camioneta Rural Willis que andava a baixa velocidade. Dentro estava o Cabo, o Sargento e mais um soldado.
Na mão do Sargento um velho fuzil modelo Mauser, alemão, calibre 7,62 com o sabre que mais parecia uma espada. Ano de fabricação? 1934. Esta era uma arma antiga, mas mortífera, eu já a conhecia. A cerca de dois quilômetros estava à estrada Manoel da Nóbrega que me tiraria daquele inferno. Quando eu entrei na estrada eles esperaram vários minutos até eu desaparecer completamente das suas vistas. Com o tempo passando, eu olhei para trás e não os enxergava mais.
Ufa, respirei, pensei que iriam me fuzilar pelas costas.
No ano de 1978, numa das viagens que havia feito a Porto Alegre, passei a organizar os artesãos que trabalhavam na rua. Normalmente naquela época as feiras hippies eram toleradas e até incentivadas. O motivo? Eu diria hoje que era para passar a idéia para alguns setores da sociedade de que havia certa liberdade. Que os hippies representavam essa condição, quando na verdade, trabalhávamos em verdadeiros guetos controlados pelo aparato de segurança pública.
Em Porto Alegre havia sido criada em 1976 a hoje tradicional feira do Parque da Redenção. Um grupo de mais ou menos trinta artesãos trabalhava na rua e não eram reconhecidos pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Inúmeras vezes tentamos criar uma nova feira de artesanato no centro da cidade.
Em 1978 tivemos o inicio de uma pequena feira que realizamos em baixo de um túnel nas imediações da Avenida Alberto Bins, mas que, infelizmente durou muito pouco tempo.
Em 1982 nós passamos a pleitear novos espaços. Na verdade, nós precisávamos oficializar alguns espaços que esporadicamente já eram utilizados pelos artesãos hippies diariamente no centro da cidade.
Depois de muitas discussões e tratativas, durante uma assembléia de Artesãos, resolvemos criar uma entidade que congregasse o coletivo e tentar abrir novos espaços de trabalho. Talvez aí sim nós tivéssemos resultados mais concretos.
Estava muito difícil para o grupo ter de enfrentar os fiscais municipais todos os dias. Tomada aquela decisão, precisávamos redigir um estatuto. Havia os modelos padrão que eram de acordo com o que o governo militar permitia, incluindo aí o próprio Ministério do Trabalho. Eleito presidente de uma comissão provisória, coube a eu elaborar um esboço para posterior discussão. Há aquele ano haveria eleições para prefeito, governadores, vereadores deputados etc. As eleições aconteciam simultaneamente em todos os níveis.
Procurei o candidato a prefeito que mais contava com a simpatia dos artesãos, Alceu Colares e o vice Glênio Peres.
Fiquei sabendo que os dois estavam fazendo um corpo a corpo pelas ruas do centro da cidade e sai a procurá-los. Encontrei os dois que estavam conversando com três pessoas e aguardei o final do papo a uns dois metros. Estávamos em frente o Colégio do Rosário. Glenio Peres se aproximou cumprimentando-nos (Eu estava acompanhado de mais dois artesãos) Escutei ele falar sobre a campanha, o que pretendia etc. O Alceu Colares complementou a falação e perguntou o que gostaríamos que fizesse caso fossem eleitos. Eu coloque o problema enquanto escutaram atentamente.
Falei com bastante convicção do que pretendíamos que em dado momento o Alceu Colares falou: Tchê moreno, você é preparado heim, porque não entra para a política? Seria um bom candidato, você fala muito bem, tem desenvoltura e poderá se sair bem, você conhece do assunto concluiu rindo.
Os Dois assumiram compromissos conosco. O Glênio Peres se colocou a disposição para ajudar a elaborar o estatuto e nos passou um endereço que ficava num prédio acima da antiga e tradicional lanchonete e cafeteria “Rian” que ficava na Rua da Praia.
No outro dia eu fui ao local indicado pelo candidato a vice-prefeito. Glênio Peres nos recebeu muito bem, serviu um cafezinho para mim e os demais e iniciamos a elaboração. No outro dia, novamente fomos recebidos, desta vez estávamos somente em dois artesãos. Em dado momento da conversa começamos a falar de política. Eu disse a ele que conhecia a sua historia.
Ele perguntou e eu falei alguma coisa. Ele seguiu falando de forma entusiasmada. Tinha preocupações com os resultados da eleição e temia certas restrições eleitorais. Glenio Peres era vereador quando foi cassado pela ditadura, esteve em Cuba e retornou ao Brasil com a idéia de continuar fazendo política. Finalmente conseguimos elaborar o estatuto da entidade, que votado em assembléia, foi aprovado.
Eu fui eleito o primeiro presidente da UNAL (União dos Artesãos Livres. Como eu não podia ficar muito tempo num só lugar (temia ser preso) eu viajei. Antes disso passei a função para ou meu vice, conhecido como ciganinho (já falecido em acidente automobilístico as uns quatro anos em Porto Alegre
Como artesão eu me permitia perambular pelo país, fazia isso quase sempre de carona, era muito mais seguro. Durante algum período eu tentei levar uma vida normal, mas sinceramente era quase impossível. A única coisa que me trazia certa segurança era a maneira que me vestia (colares, pulseiras, braceletes, roupas extravagantes, inclusive algumas compradas em lojas conhecidas como lixão), ali eram vendidas roupas jeans norte americanas de todos os tipos. Sendo assim (eu pensava) não seria reconhecido facilmente com aquele cabelão negro e encaracolado abaixo dos ombros e uma barba acentuada.
Porém, havia comigo uma informação e um alerta que eu tinha recebido anteriormente de um amigo e posteriormente do ex-Cabo Dias quando de minha estada em Porto Alegre. De fato, nem precisariam estar me avisando, meu receio era permanente, tinha a impressão de que estava sendo vigiado por onde eu andasse. Aplicava no meu dia a dia o que havia aprendido lá mesmo no exercito, ou seja, o de nunca permanecer durante um combate, por mais de cinco minutos no mesmo lugar. Era assim que eu agia. Conversava um pouco e já saia andando rumo a qualquer lugar.
Sem motivo aparente eu convidei minha segunda companheira para irmos até o Estado de São Paulo. Chegando à capital paulista fomos morar num hotel ali na Avenida Duque de Caxias, muito próximo da Praça Princesa Isabel (local que havia morado nos anos de 1976/77. Era o Hotel Duque de Caxias.
A partir dali eu comecei a preparar um plano pessoal de sair do país. Já não era mais aquele menino ingênuo que entrara para o Exercito aos 16 anos. Sabia claramente que se fosse pego pelos militares sofreria graves conseqüências, incluindo ai a possibilidade concreta de ser assassinado como ocorreu com outros companheiros de luta.
Juntei uma quantia ínfima em dinheiro e comecei a direcionar minha viagem até Brasília. Saí pelo interior de São Paulo indo em direção a Minas Gerais, passei pelo triangulo mineiro e me dirigi ao Estado de Goiás. Fui direto a Brasília. No caminho eu ia vendendo artesanato. Carregava no colo meu terceiro filho, sendo ele o primeiro do segundo casamento.
Minha companheira só ficou sabendo o que eu pretendia fazer quando já estávamos praticamente dentro de Brasília. Eu sentia certo receio em me abrir para ela, e não estava totalmente enganado. Acho que se tivesse conversado mais francamente há mais tempo, talvez fosse diferente o resultado.
Mas enfim, decidido o que faria, eu a convidei para irmos para fora do país. Em poucas e curtas palavras eu comentei com ela a minha condição de desertor, (omiti outras informações) disse a ela que se saíssemos do Brasil poderíamos viver melhor. Convidei-a para irmos para a França, e eu disse a ela que eu temia ser preso pelo exercito.
Também comentei que tinha sido avisado por um ex-colega de farda, de que eles estavam me procurando. Se fosse pego poderia ser morto. Comentei também que como não poderia tirar todos os documentos para exercer uma atividade formal, o melhor seria sairmos do país.
Ela me ouviu atentamente e concordou. De fato nossa situação não estava muito boa. Ela era uma menina que também tinha sido abandonada pela mãe e passado toda a sua infância em internatos de caráter religioso. O internato do qual ela viveu era ligado a Igreja adventista que mantinha convênios na área educacional com o Rotary Clube do Brasil.
Nessa condição ela ainda tinha uma relação com a igreja adventista, e eu cheguei a acompanhá-la algumas vezes nos cultos. Antes disso, do ponto de vista religioso, eu havia me afastado do judaísmo há algum tempo. Houve um período que segui por alguns meses também a conhecida “Fé Bahaí”. Enfim, éramos dois ex-internos que sonhavam com dias melhores. No meu caso, havia a questão de salvar a minha pele das garras da opressão.
Nos dias anteriores estávamos passando algumas dificuldades. Como pretendia ir para a França, não queria demonstrar que era apenas um Artesão-Hippie, sendo assim comecei a me desfazer dos meus produtos vendendo-os a preços baixos. Quando já estava quase sem nada, iniciei a venda de minhas ferramentas.
Durante nossa permanência em Brasília ficamos dormindo na rua com nosso filho nas imediações do CONIC (uma galeria existente nas imediações da antiga rodoviária). Outras vezes ficamos no alojamento de uma construção que havia parado há alguns meses. Esta construção estava localizada no Plano Piloto na L2 próximo a Fundação Getúlio Vargas.
Os alojamentos estavam em perfeito estado e eram ocupados por um grupo de hippies. Alguns deles eu havia conhecido durante minhas andanças Brasil a fora. Quando cheguei ali à primeira vez fui logo convidado a entrar.
Nós cozinhávamos numa lata vazia de óleo de cozinha que tinha aproximadamente 18 litros. Todos contribuíam com uma grana e ali fazíamos nossa comida. Às vezes um sopão, outras um arroz carreteiro. Não dava pra gente variar a comida por conta da localização muito próxima de prédios habitados. Mesmo assim, nossa alimentação coletiva acontecia.
Eis que chegou o grande dia.
Eu falei para a minha companheira: Nós vendemos tudo o que tínhamos e agora não temos nada, vamos para a embaixada da França? Ela não me respondeu apenas me acompanhou. Chegando ao Lago Sul eu fiquei admirado pelas construções ali existentes. Brasília é realmente uma cidade organizada. Havia dois setores de embaixadas, as do lago sul e as do lago norte. Enfim, ali estávamos diante de nosso objetivo.
Passei caminhando em frente da Embaixada da Colômbia, e da embaixada do México. Quando estava a certa distância, lembrei-me que dias antes, um cidadão havia se abrigado ali e o governo Brasileiro estava relutante com o caso. Mas, eu pensei por alguns segundos que minha saída do Brasil pudesse ser por este país, mas, e se desse errado? Se os mexicanos não me concederem asilo como é que ficarei?
Decidido, caminhei até a embaixada da França.
Já tinha comigo uma desculpa que faria com que me deixassem entrar, sem sombra de dúvidas. Tínhamos colocados nossa melhor roupa. Estávamos completamente descaracterizados como hippies, na verdade pareceríamos um casal comum.
Quando cheguei à entrada fui interpelado por um Policial Militar do Brasil. A embaixada da França era protegida por um Muro de circundava outro muro que abrigava verdadeiramente a embaixada francesa. Os policiais militares brasileiros estavam ali como reforço.
A França era conhecida internacionalmente como uma terra de asilos, um país solidário para aqueles que sofriam perseguições em seus países. Era um país que dava total proteção aos perseguidos do mundo inteiro. Foram assim com vários perseguidos políticos brasileiros que haviam retornado com a lei de anistia. Mas o meu caso teria que passar por cima do entendimento de que ninguém mais poderia ser preso ou perseguido por questões políticas após esta lei.
Estávamos todos anistiados? Não era verdade. As perseguições e assassinatos no Brasil ocorriam mesmo durante o processo de abertura política. Durante os anos de 1986 e 1987 a anistia internacional registrou o assassinato por motivação política de dois ou três jornalistas no Brasil. Comigo, seguramente não haveria exceções.
Andando, imaginei, seria difícil entrar ali, eu sabia disso, mas precisava adentrar o seu espaço extraterritorial, se conseguisse nada iria me fazer voltar.
Uma embaixada tem a mesma garantia internacional da extraterritorialidade que tem um navio ancorado em qualquer país sob sua bandeira. Isso se aplica nos dois casos. Na verdade, funciona como um pedaço de seu país em território de outro.
Eu fui entrando no pátio cercado com muros, passava ao lado da cancela de veículos quando o Policial Militar me perguntou: Vai a onde? O que o Sr deseja? Eu respondi: Boa tarde Senhor Eu gostaria de me dirigir à embaixada. Sou de Porto Alegre, tenho um pedido de uma vizinha amiga que esta com o seu filho na frança há uns dois anos e não tem noticias dele. Eu gostaria apenas de obter algumas informações pra poder levar a ela no meu retorno a Porto alegre. Estou aqui a passeio.
O Policial Militar nos olhou atentamente, viu que estávamos com nosso filho no colo da mãe e disse: É por ali senhor, entre naquele portão que estará dentro da embaixada. Ali tem uma recepção, irão lhe atender, por favor, disse.
Eu não estava acreditando que o meu sonho estava por acontecer. Não acreditava que tinha sido tão perfeita a minha idéia de mentir sobre o filho da tal vizinha.
Chegamos ao Balcão e uma Senhora loira de uns 40 anos ficou nos olhando enquanto atendia outras pessoas. Volta e meia me olhava de cima para baixo. Não tirava os olhos da sacola que eu portava. Na verdade, ali existiam apenas as roupas de nosso filho. Eu fiquei alguns segundos pensando nos dois que estaria deixando no Brasil. Eu nutria uma grande confiança de que nosso futuro seria melhor. Meu filho mais velho estava com o seu padrinho.
A minha filha irmã dele também estava com sua madrinha em São Paulo Capital. Os dois havia nascidos ali em 1977 e 1978. Ambos os padrinhos eram artesãos bem sucedidos financeiramente. Fazer artesanato e vende-los de forma continuada numa Feira de Artes e Artesanato, era uma garantia de sobrevivência plena.
Nos dias de hoje, sabemos pela historia que as feiras e praças que acabaram, com algumas exceções, levaram dezenas de Artesãos ao estado de miséria. Hoje este segmento social e cultural vive na grande maioria, em condições paupérrimas, miseráveis e até de mendicância. Isso é lamentável.
Passado aqueles pensamentos eu caí na realidade. A senhora loira de olhos azuis chegou ao balcão bem a minha frente, me olhou nos olhos e perguntou em português BR: O quê o Sr deseja? Em que posso servi-lo? Eu respondi: Estou me asilando aqui!
A loira deu um sorriso maroto e me disse: Como assim? E novamente lhe respondi: Estou me asilando e daqui não saio. Ela fez uma expressão séria como se não estivesse acreditando no que ouvira, e imediatamente chamou outro senhor que falava português, mas, mantinha um sotaque Frances arrastado em suas palavras.
Ele então me perguntou com ares de cumplicidade com aquela que lhe chamou: O que o Sr deseja mesmo? Não respondi no ato. Esperei cerca de 30 segundos que para os dois pareciam intermináveis e falei: Estou me asilando aqui e não vou sair deste que é um território Frances. O Diplomata (eu soube mais tarde) me convidou para ir a uma salinha conversar mais calmamente. Ele tinha entendido o que eu queria, mas estava procurando me desestimular como se isso fosse algo anormal naquela circunstancia política pelo qual o Brasil passava.
Ao entrar na sala eu observei com o canto dos olhos e não me contive num sorriso disfarçado quando vi que dois marinheiros da armada francesa que eram partes da segurança interna revistavam rapidamente nossa sacola que apenas continha as roupas de nosso filho.
O Diplomata quis saber as razões que me levaram a pedir o asilo. Contei calmamente alguns episódios e a razão pelo qual eu estava sendo perseguido. Ele me ouviu atentamente. Após os meus comentários seguiu dizendo: Não podemos dar asilo para o Senhor, a França realmente tem essa tradição. Casos iguais ao do Sr acontecem no mundo inteiro, e emendou, se o senhor desejar, eu posso lhes dar uma ajuda financeira para que possam começar a vida em algum lugar do Brasil. Não vamos lhe dar asilo concluiu. Eu fiquei calmo e repeti a ele: Estou me asilando aqui neste território Frances e dele não sairei, exceto com um salvo conduto do governo brasileiro para que eu possa deixar o país em segurança.
Com lhe disse senhor, eu sou desertor de uma unidade de elite do exercito, e estou sendo procurado, se me acharem, serei preso e morto, seguramente disse a ele. Além disso, o senhor deve estar sabendo que neste regime militar nós comunistas somos mortos até pelas costas, portanto, aqui ficarei.
Ele se retirou da sala por uns dois minutos e retornou com um maço de notas da moeda corrente do Brasil e disse: Não vamos conceder asilo ao senhor, se quiser uma ajuda aqui está, e eu lhes garanto que sairão em completa segurança.
Até este momento ainda não avisamos as autoridades de seu país disse o diplomata. Se insistir na sua intenção, teremos de comunicá-los. Os acontecimentos poderão tomar outro rumo. Eu emendei a ele: O governo Francês nunca permitirá a entrada de autoridades brasileiras dentro de seu território. Isto está garantido pela ONU e por outras convenções internacionais.
Ele me olhou demoradamente nos olhos e disse: É verdade, mas nós não estamos dispostos a asilá-los aqui. Eu tenho que comunicar as autoridades do meu país e do seu. O Embaixador ainda não sabe da presença de vocês, e também não temos estrutura para mantê-los aqui. Eu pensei comigo, mas me contive em dizer a ele que estava mentindo.
Até aquela data eu estava vivendo clandestinamente, de maneira informal. O crime de deserção prescreve somente dez anos após o acontecido. Eu poderia simplesmente ser preso nesta argumentação e pagar por aquilo que só os S2 (2ª Seção - Informações e Contra Informações – Inteligência Militar) tinham conhecimento, o de minha militância clandestina.
Em suma, era isso que estava temendo, sem contar a possibilidade de vir ser morto. A anistia não era garantia para ninguém. Sabemos o estado de terror que vivia alguns exilados que retornaram ao Brasil após a anistia de 1979. Muitos viviam como mortos vivos, ou seja, sentiam-se o tempo inteiro como se estivessem diante de uma alça de mira, viviam presos em suas próprias casas. Mesmo estando garantidos no direito de ir e vir baseado naquela lei, a anistia não lhes trazia tranqüilidade.
Eu realmente estava decidido a permanecer ali, de ir para a frança, de tentar salvar minha pele, de recomeçara a minha vida na Europa. Sabia que nesta tentativa eu poderia encontrar dificuldades. Mas também tinha plena consciência de que teria de ser firme para conseguir concluir o meu objetivo, e eu estava preparado.
O que eu temia e aconteceu foi a influencia da conversa que atemorizou a minha companheira. Ela tinha apenas 18 anos e iniciou um choro que demonstrava a sua contrariedade em sair do Brasil. Ficou assustada com a possibilidade mentirosa do diplomata que num blefe espetacular conseguiu convencê-la psicologicamente de que teríamos problemas com as autoridades da Ditadura Militar.
O que restava para mim? Como poderia naquele momento permanecer ali asilado e deixar minha companheira sozinha, sem nada mesmo, em plena situação de penúria. Ela não conhecia Brasília. Esta era a primeira vez que tinha viajado tão longe da casa de sua família. Na verdade, ela havia encontrado a sua família há poucos anos, por volta dos seus 12 anos.
Como artesãos, tínhamos vendido tudo, incluindo ai as nossas ferramentas de trabalho. Eu olhava pra ela e não acreditava que meu sonho estava sendo destruído por aquela que deveria estar comigo em qualquer situação. Não éramos casados, mas tínhamos uma vida em comum.
No meu entendimento, a fidelidade e a lealdade entre um casal, não precisa estar expressa em documentos. Pra mim, tudo isso é uma questão de honestidade, de caráter e confiança mutua, e não foi o que aconteceu. Ela fraquejou diante da primeira pressão diplomática que enfrentou. Pra mim não restou outra saída a não ser esta mesma, a de sair. Pela primeira vez na vida eu havia me sentido derrotado.
O diplomata voltou a colocar em cima da mesa aquele maço de dinheiros, que deveriam representar nos dias de hoje uma quantia em torno de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Eu já tinha dito a ele que não estava atrás de dinheiro e ele insistiu que eu pegasse. Meu orgulho de brasileiro, a minha dignidade não estava à venda diante de um fracasso. Fiquei com vontade de mandá-lo esconder aquele maço no seu traseiro, mas me contive.
Ele percebendo que não aceitaria e, estava preste a concordar com a minha companheira, comentou: Eu acompanho vocês até o final do setor das embaixadas aqui do lago sul. Podem confiar, enquanto estiverem ao meu lado, nada lhes acontecerá. E mais ainda, não avisamos as autoridades do Brasil. Podem sair tranqüilos como quando entraram.
Embora nunca estivesse tranqüilo como quando entramos ali, foi o que fizemos. Estávamos em outubro de 1982. A relação com minha companheira nunca mais foram à mesma.
Em três dias eu me recuperei e consegui adquirir algumas ferramentas de trabalho. Um artesão que eu havia ajudado em São Paulo viu a minha situação e dividiu parte de sua matéria prima pra que eu recomeçasse.
Nunca comentei a ele os verdadeiros motivos de ter ficado sem nada, mas quando me perguntou se tinha perdido tudo para o rapa, eu balancei a cabeça concordando. Enfim, com este recomeço eu pude pegar uma BR novamente (linguagem usada pelos artesãos hippies quando viajam de um lugar para outro). Saí de Brasília via Belo Horizonte e rumo ao Rio de Janeiro. Lá chegando segui viagem até a região dos lagos.
Estive algum tempo em Cabo Frio e Búzios, que, aliás, tinha ali vários amigos que não trocavam aquela região por nada. O Urso era um deles que o conhecia desde Porto Alegre. Fazia vários anos que não o via, ele havia se casado com uma menina de Curitiba e estava morando ali em Búzios a cerca de três anos.
Nós ficamos hospedados na casa dele por cerca de um mês. Neste período, as eleições para governadores no Brasil estavam pegando fogo. Leonel Brizola estava com uma vantagem espetacular sobre o candidato Moreira Franco do PMDB. A rede Globo mentia divulgando que havia um empate técnico, não era verdade.
Como a ditadura ainda corria forte nas veias de várias autoridades e setores da imprensa burguesa, já se previam a possibilidade de fraudes na contagem dos votos. E, não deu outra, O DATAPREV fazia a contagem e a Rede Globo estava manipulando os resultados para impedir a posse de Brizola, este, porém, estava fazendo uma contagem paralela e detectou a malandragem a tempo. Os Cariocas festejaram a eleição daquele que a burguesia chamava de “Caudilho Gaucho”.
Em São Paulo Franco Montoro assumia o governo e Fernando Henrique Cardoso o seu lugar no Senado da República.
Eram os trabalhistas se afirmando após uma longa briga travada na justiça entre Leonel Brizola e Ivete Vargas pelo comando da Sigla PTB que pertencera aos Brizolistas antes da Ditadura Militar. Na disputa que sacudia o meio político no país, Ivete Vargas levou vantagem, e para Brizola, só restou criar um novo partido e outra sigla.
Com a nova sigla os brizolistas se saíram muito bem nas eleições. Anos mais tarde Ivete Vargas veio a falecer de câncer de mama. Isso já não importava mais, além de terem perdido não havia mais interesse na sigla. O PDT já tinha escrito o seu nome na história.
No ano de 1983 em me separei novamente, mas minhas andanças e minha luta pela sobrevivência continuavam. Naquele ano eu havia retornado a Porto Alegre, fiquei ali uns três meses e retornei novamente para São Paulo. Esta cidade pra mim representava um porto seguro em todos os sentidos, e também era ali que eu tinha minha militância mais ativa. Eu tinha ajudado a fundar a Comunidade de Artesãos de Semana da Praça da República, tendo inclusive sido eleito vice-presidente da entidade.
Como havia acontecido em Porto Alegre nos anos 80, as feiras informais nasciam às margens das feiras formais. Por este motivo já estava acontecendo no país inteiro, à categoria se organizar para garantir mais espaços de trabalho.
Nossa comunidade nascera com mais de 100 integrantes, e com muita mobilização e organização, conseguimos a tolerância da Administração da Regional da Sé na manutenção desse novo espaço por longos anos. Eu havia saído e retornado algumas vezes, mas conseguia trabalhar ali sempre que voltava.
A feira chegou a ser até mais rentável do que a de domingo, até porque, se chovesse num final de semana nós conseguíamos garantir a sobrevivência nos outros dias. Em 1984 vou novamente a Porto Alegre, tinha de visitar meus filhos.
Não deu outra, eu voltei a reatar com minha companheira. Afinal, com duas crianças pequenas tínhamos que tentar criá-los juntos. Nosso relacionamento, porém durou somente mais um ano. Deixei-a com um terreno e uma pequena casa pra que tivesse condições de tocar a sua vida. Eu continuei a viajar entre o Rio de Janeiro e Porto Alegre. Durante muitos meses participei de um circuito de feiras que era organizado pela Associação dos Artesãos Profissionais do Estado de São Paulo.
Eu era um dos integrantes e mantinha um bom relacionamento com a diretoria da entidade, e por isso, havia sido convidado a participar daquilo que seria uma feira móvel pelo interior do estado. Na verdade elas aconteciam paralelamente a eventos esportivos, aniversário de cidades, Feiras de agronegócios etc.
Enfim, era uma alternativa que estava dando certo. Naquele mesmo período as condições políticas do Brasil iam se tornando mais agitadas, chegando à flor da pele, o povo começava a exigir eleições diretas já.
De fato, este evento foi se agigantando cada vez mais. A mídia cooptada e golpista (sic) não tinha mais como esconder os anseios da massa popular, que, chamada pelos partidos políticos recém formados e por entidades da sociedade civil organizada, começava a sacudir pelo país.
Recentemente havíamos saído do bi-partidarismo. O Partido dos Trabalhadores já era uma realidade. Outros partidos iam se formando, Lula já havia estreado nas eleições para o governo de São Paulo, que mesmo tendo tido uma votação quase insignificante, ainda assim era o pontapé inicial para sua chegada a presidência do Brasil.
No ano de 1986 eu decidi me estabelecer no sul do país. Escolhi a cidade de Florianópolis para viver definitivamente. Naquele ano eu já estava vivendo com outra garota de dupla-nacionalidade, francesa (guiana) e brasileira.
Tínhamos uma vida bastante tranqüila. Eu continuava trabalhando na Praça da República. Havia conseguido preservar minha licença durante muitos anos, apesar de constantemente me ausentar de São Paulo.
A Liliane tinha 19 anos, era uma loirinha muito bonita, estatura média, olhos verdes, inteligente e discreta, mas não gostava de falar em política. Um ano antes acabara de vir da guiana francesa.
Vivemos juntos por cerca de 10 meses, não tivemos filhos, que, aliás, convivia conosco apenas o meu mais velho que na época tinha em torno de dez anos. Embora em São Paulo eu tivesse meios mais tranqüilos de sobrevivência, já estava a algum tempo querendo fixar residência em outro lugar.
Na semana que antecedia minha vinda a Florianópolis eu havia comentado a minha intenção de abandonar a capital paulista, convidei-a para virmos morar em Santa Catarina.
Aqui teríamos mais oportunidades. O Estado era prospero e, a ilha de Santa Catarina muito bonita. Nesta atividade talvez conseguisse até comprar um terreno e construir nossa casa.
A Liliane não quis me acompanhar nesta mudança, eu respeitei a sua decisão, embora tenha ficado com o coração partido. Ela preferiu visitar seus familiares em Ivaiporã no Paraná e seguir a sua vida de forma independente como havia feito desde os seus 16 anos. No meu caso, eu sempre tive essa individualidade nas decisões, talvez este tenha sido o meu maior erro nos relacionamentos que mantive.
Posso imaginar se não tivesse sido assim, eu não estaria vivo. É bom lembrar que o “sistema” nunca deixou de monitorar o cidadão, mesmo nos dias de hoje, ainda existe esta possibilidade. Basta observarmos as várias tentativas de criminalização dos movimentos sociais e de suas principais lideranças.
Nunca confiei nos políticos remanescentes daquele período obscuros que se abrigam em partidos camaleões sob a “pecha” da democracia, que, aliás, eram contrários. Sinceramente, fico boquiaberto de ver alianças políticas entre os inimigos de outrora, sob a égide de que hoje os tempos são outros, não é verdade.
Existe um chamado nos movimentos revolucionários de luta que diz:
- Você poderá até doar a medula óssea para salvar a filha de um burguês, mas na primeira oportunidade, ele te mata pelas costas.
...Durante o verão de 1987 eu encontrei a minha 1ª mulher (casamos em março de 1977) em um dia que ela veio visitar nossa filha Christiane que estava vivendo com a sua madrinha já há algum tempo, por conta de minhas andanças. Aquela realmente seria a ultima vez que nos encontraríamos. Soube mais tarde que ela havia fixado residência em Santos ou São Vicente no litoral de São Paulo.
Em pleno inverno de 1987 eu decidi vir morar em Florianópolis